terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Lama escatológica de esculachocracia e cretinelite


               
A aterradora imagem daquela montanha de lama, detritos e cadáveres avançando sobre pessoas, veículos e casas em Brumadinho, tudo arrastando, destruindo e esmagando, ilustrou perfeitamente a horrenda maré de cretinice, ignorância e obscurantismo que nos soterra dia-a-dia.

Ministra que se diz doutora bíblica põe em dúvida a teoria da evolução das espécies de Darwin; outra personagem quer que as campanhas de prevenção da AIDS sejam patrulhadas para que não ofendam as famílias; gigolôs da internet, com seus robôs, criam o caos do Brexit no Reino Unido e elegem tipos como Trump e quejandos em diversos países; há quem queira cercear a palavra de professores em salas de aulas; cantora glorificada em capa da principal revista de negócios do Brasil alardeia ao mundo que seus flatos são inodoros desde que se tornou vegetariana; colocar armas nas mãos das pessoas se transforma em solução para a segurança pública; as asneiras do Big Brother são a segunda rubrica do site UOL, antes de Esporte e de Notícias; um sujeito chulo, encafuado no exterior, que se diz filósofo, já foi astrólogo e vende cursinhos sem pé nem cabeça, inspira falatórios delirantes de nefelibatas que subitamente viram governantes; inventam-se expressões novas que vir(aliz)am moda: boataria se torna fake-news e mentira se trasveste de verdade alternativa, pós-verdade e outras besteiras.

E nós, as vítimas desse lamaçal peçonhento de imbecilidades, nos debatemos na tentativa de entender como, diabo, iremos – se é que iremos – sobreviver. 

Antes da internet, essas estultices e seus seguidores vegetavam no limbo do anonimato que merecem, porque ninguém com mínimo bom-senso lhes daria ouvidos. Agora, porém, as redes sociais lhes proporcionam a ferramenta de que precisavam para emergir rastejando do lodo de suas tocas e difundir asneiras (quando não atentados contra a sanidade). 

A nova elite deixou de ser composta de intelectuais, donos de patrimônio e políticos respeitáveis e passou a ser constituída por uma nova categoria: famosos e famosas – a qualquer custo – deixaram de ser adjetivos e passaram a ser substantivos, até mesmo profissões. 

A política, a grande arte da gestão compartilhada da coisa pública, vê-se dominada por mediocridades que mal conseguem se expressar – ainda que tivessem o que dizer. Para nós, o único consolo, nesse aspecto, é que quase nenhum país pode criticar o Brasil; basta lembrar o que fazem Donald Trump nos EUA e Theresa May no Reino Unido, para calar qualquer americano ou britânico – e outros primeiromundistas que se cuidem. 

Mas e a saída? Onde está a saída? Antes que me tachem de reacionário ou elitista, repito aqui minha profissão de fé democrática, que sempre foi e é a crença que me orienta. O problema é que as democracias clássicas – Grécia, Roma, mesmo a Inglaterra de Churchill e os Estados Unidos de Lincoln – não davam  alto-falantes à totalidade da população. As chamadas classes dirigentes, ainda que procurassem beneficiar o povo, ou pelo menos a maioria, não davam ouvidos a todos. Não havia meios de comunicação para que a população inteira vocalizasse suas opiniões. Hoje há.

Por isso a malta de frustrados, os revoltados anti-isso-ou-aquilo, os que se julgam vítimas da globalização, os pisoteados pelas desigualdades, os simplesmente odiosos e os que buscam ser famosos a qualquer preço conseguem, por meio das redes sociais, expor suas vociferações. E os cafetões da internet, que se aproveitam desse caldo (de cultura, ou incultura), mineram e exploram a ignorância, credulidade e ingenuidade desses segmentos sedentos de apoio e suporte material, oferecendo salvacionismo religioso ou político a varejo.

Como jornalista e profissional de comunicação, lamento especialmente o empobrecimento da imprensa. Perfeita, claro, ela nunca foi. Mas sua diversidade, ainda que também eivada de desequilíbrios, permitiu, através de seguidas décadas e em contínua busca de profissionalismo, que a opinião pública – a resultante dos embates de visões, interesses e convicções  – acabasse por predominar, graças à liberdade de expressão de todos os agentes. 

A triste decadência da imprensa e sua substituição por uma comunicação populista, rasteira e grosseira subverte e prostitui a democracia, ao criar uma gigantesca ágora global, onde os que acham que a Terra é plana e os que acreditam que todos descendemos realmente de Adão e Eva têm tanta voz – ou mais – quanto os cientistas, os verdadeiros filósofos, os que julgam ter contribuições substantivas para a melhora da vida das pessoas. 

Então, voltando à busca da saída desse pântano venenoso e avassalador, só recorrendo ao político americano Al Smith, que, em 1933, afirmou que “Todos os males da democracia se curam com mais democracia”, no que tem sido ecoado pela OAB, CNBB e outras entidades e pessoas, ao redor do mundo e ao longo dos anos. 

Para nossa desgraça, porém, os processos democráticos raramente têm efeito imediato ou são eficientes. (Em geral essa celeridade é apanágio das ditaduras e dos governos fortes, de esquerda ou de direita.) A democracia evolui sobre rodas quadradas, aos solavancos, recua, se move para os lados, geralmente em marcha lenta – mas chega lá em razoável harmonia. 

Portanto a resposta é que, até onde ainda se consegue enxergar, não nos livraremos com rapidez desse miasma que nos asfixia. Mas não podemos desistir e sim continuar a preservar e promover os mais elevados valores, combater as mentiras, contrafações, mistificações e picaretagens em geral sempre que aparecerem e nos blindarmos contra a irrefreável lama escatológica. 

Para que, apesar de hoje mergulhados e chafurdando no barro pegajoso, saiamos dele melhores. Como os nobres bombeiros-heróis em Brumadinho.