Por Adam Gopnik
The New Yorker
24
de Setembro, 2020
Adam Gopnik, redator
da The New Yorker, escreve para essa revista desde 1986. É autor do recente livro A Thousand Small Sanities: The Moral
Adventure of Liberalism.
Em seu primeiro emprego em jornal, no Reporter, de
Ashton-under-Lyne, próxima a sua cidade natal de Manchester, na Inglaterra, o
jovem Harry Evans foi indagado por um carrancudo editor exatamente quantos
raios há numa roda de bicicleta. (Naqueles anos difíceis da guerra, Evans
pedalava quase 20 km. para ir trabalhar). “Não sei, senhor”, respondeu o foca. “Vá
descobrir! Curiosidade é a coisa mais importante no jornalismo. Curiosidade!
Faça perguntas, Evans!” insistiu o rabugento editor.
E
o rapazinho seguiu o conselho. De todas as características memoráveis de Evans,
que morreu na última quarta-feira, aos 92 anos, a mais memorável era a
qualidade e constância de sua curiosidade. A curiosidade pode parecer uma
virtude secundária, como a cortesia ou a pontualidade, mas a qualidade da
curiosidade de Harry sempre foi uma demonstração de que, nas mãos certas, ou na
mente certa, pode ser uma virtude primordial – e de que, para profissionais de
jornais e revistas, a curiosidade é, ao lado da coragem, a virtude que mais
diferença faz.
Harry
estava sempre curioso – simpaticamente curioso, exigentemente curioso e, para
quem trabalhava com ele, por vezes exaustivamente curioso: curioso sobre
politica, curioso sobre redação, curioso sobre o amor, curioso sobre o mundo.
Acima de tudo, curioso sobre a verdade das coisas – não a verdade oficial ou a
verdade aceitável ou a verdade cosmética, mas a verdade não envernizada dos
eventos significativos. Ele a buscava implacavelmente e sem temor; e o charme e
a ingenuidade juvenil de seu jeito pessoal de ser eram apenas um disfarce para
alguém que achava que, quer se tratasse de raios de rodas de bicicleta ou
segredos enterrados, sua função na vida era saber.
Ele
abre as maravilhosas memórias de sua vida jornalística, My Paper Chase (Minha Caça aos Jornais) – publicado quando ele já
tinha mais de 80 anos, mas ainda em um tom e espirito lindamente valorosos – narrando
seu encontro com soldados exaustos numa praia, que haviam acabado de ser
evacuados de Dunquerque e tomando consciência, apesar de ser apenas uma
criança, de que a historia-padrão de Dunquerque como um “triunfo” para elevar o
moral estava distante da experiência vivida de Dunquerque por quem testemunhou
o episódio. Aquela cena na praia informou sua vida com a confiança em que a
historia oficial não era necessariamente, nem mesmo provavelmente, a historia
adequada – e que a historia oficial poderia conter elementos da verdade
rearranjados.
Foi
essa busca da verdade, muitas vezes enfrentando resistência, que fez dele o
mais famoso jornalista da Grã- Bretanha na segunda metade do século vinte. Como
editor de jornal, ele se encontrava em um nível legendário que, nos Estados
Unidos, só Ben Bradlee, no Washington
Post, pode igualar. Em seu primeiro cargo importante de editor, no Northern Echo, de Darlington, Evans
liderou uma luta quixotesca para limpar a reputação de um jovem chamado Timothy
Evans, que fora injustamente condenado e enforcado por assassinato. O trabalho
de reportagem impulsionou o combate à pena capital na Grã-Bretanha e levou
Evans a acreditar que é justamente no momento em que um jornal está começando a
cansar de sua própria cruzada que o público realmente começa a prestar atenção.
A reputação que conquistara no Norte da Inglaterra o levou a ser contratado como editor do Sunday Times, em Londres, aos 38 anos de idade. Foi ali que ele lançou seu time de repórteres investigativos chamado “Insight”, que, entre outras coisas, conseguiu justiça, ou ao menos recompensa, para as crianças mutiladas por uma droga contra enjôo matinal chamada Talidomida. (Essa história foi tema de um belo documentário recente, “Attacking the Devil” (Atacando o Demônio). Além disso, Evans e seus repórteres também cavaram fundo, enfrentando a resistência do "establishment", para investigar a verdadeira dimensão da espionagem cometida pelo [agente secreto britânico] Kim Philby em favor da União Soviética.
Evans fez parte daquela geração realmente
notável de heróis britânicos da classe trabalhadora que se tornaram adultos
durante o primeiro governo do Partido Trabalhista, após a segunda guerra
mundial. Ele descreveu como, ao apenas dizer
que queria ir para a universidade era, para um jovem de família operária de sua
geração, do Norte da Inglaterra, como anunciar que pretendia se casar com a
[estrela de cinema] Betty Grable; era uma atitude igualmente arrogante e
igualmente de sucesso improvável.
Foi
sinal de sua clareza mental o fato de que Evans nunca foi estreitamente
partidário em suas posições políticas. Filho de um pai esquerdista que foi
francamente pró-soviético durante a guerra, ele manteve essa paixão igualitária
em seus embates com autoridades britânicas e, mais tarde, em suas confrontações
com Rupert Murdoch, que o elevou a editor do Times diário e mais tarde o demitiu por não ser suficientemente
obediente à causa de Margaret Thatcher. No entanto Evans também foi simpático à
batalha de Murdoch, em 1986, contra os sindicatos de trabalhadores em jornais, que
Murdoch julgava “Ludistas” [combatiam o emprego de máquinas no trabalho, por
julgarem que ameaçavam seus empregos].
Sua mudança para os Estados Unidos, na
década de 1980, levou aquele que alguns chamavam de “o James Bond de Fleet
Street” [a rua onde se localizavam as instalações dos principais jornais de
Londres] a se tornar famoso, em certa medida, como o marido de sua segunda
esposa, Tina Brown, quando ela passou a ser editora de Vanity Fair e mais tarde da The
New Yorker.
Na verdade, porém, suas realizações nos
Estados Unidos foram igualmente extraordinárias: como publisher, na editora Random House, ele contratou e produziu
incontáveis livros da melhor qualidade e foi um inigualável apoiador de
escritores retardatários. (Ele me contratou para dois livros, um sobre arte –
que eu ainda não concluí, 30 anos depois – e outro, sobre Paris, já publicado).
Mas ele nunca mostrou o menor ciúme da extraordinária carreira de sua esposa
como editora de revistas americanas e seu feminismo instintivo o fez mais
orgulhoso das realizações dela do que de seus próprios feitos.
Mas
ainda mais notáveis que seu trabalho editorial foram os ótimos e ambiciosos
livros que ele escreveu após deixar o trabalho de escritório, entre os quais
estudos sobre a História americana, um manual de boa redação e aquelas maravilhosas
memórias da vida de jornalista, onde o cheiro e a sensação dos tipos quentes
são palpáveis.
Ele era curioso, corajoso e enérgico. E era amável também. Poucos podem ter conquistado esse qualificativo mais prontamente, ou merecido mais essa palavra. Ele era uma daquelas raras pessoas que, se você o conhecesse um pouco, ficaria sempre contente ao vê-lo – sabendo que, sem afetação ou malícia, ele lhe interrogaria de trás para a frente e de frente para trás sobre como estavam as coisas, como realmente estavam as coisas; o que você tinha visto no último lugar onde estivera e o que isso lhe tinha feito pensar. Com seus mais de 90 anos, Harry Evans ainda continuava a contar raios de roda de bicicleta e a perseguir estrelas.