Esse escândalo do esquema de monitoramento de dados de telefone e internet, pela NSA-Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, que ocupa atualmente amplo espaço na imprensa mundial, produziu, segundo a Folha de S.Paulo de hoje, um aumento de 6.888%, em 24 horas, das vendas, pela Amazon, do livro 1984, de George Orwell, que apresentou ao mundo o Big Brother, o super-sistema de espionagem dos cidadãos, pelo governo, que o autor inglês criou em ficção para criticar a realidade dos governos ditatoriais.
Fast-back. Conheci há tempos o francês que presidia a Fundação Fredrik
Rosing Bull, cujo nome homenageia um talentoso engenheiro norueguês que nasceu
em 1882 e foi pioneiro no desenvolvimento tecnológico da Europa. Essa fundação
foi criada pela Bull, empresa também batizada em homenagem a esse engenheiro, líder
francesa do desenvolvimento da tecnologia digital, que atualmente, como Groupe
Bull, atua em uma centena de países, inclusive o Brasil.
Na minha conversa com o presidente dessa Fundação – que
estuda as conseqüências econômicas, sociais e humanas do emprego generalizado
da informática – surpreendi-me quando ele disse que sua entidade era contrária
à identificação das pessoas, pelo Estado, com um número único para cada
indivíduo (RG, CPF, carteira de motorista, título de eleitor etc., todos com o
mesmo número), coisa que, na minha santa ignorância, parecia lógica, eficiente,
racional e facilitadora da vida das pessoas.
Essa conversa e a minha ignara perplexidade aconteceram há
quarenta anos.
Dando um fast-forward
para os dias de hoje, li recentemente um livro assustador (infelizmente ainda não
publicado em português) que me recordou esse episódio. Chama-se Dying Light(**), do jornalista inglês
Henry Porter, que vem-se dedicando à luta pelos direitos humanos, liberdades
civis e de expressão na Grã Bretanha. Publicada em 2009, a obra veio à luz, por
coincidência, exatamente 60 anos depois da primeira edição de 1984, do também inglês George Orwell,
ficção que previa a instalação de uma ditadura mundial em que cada cidadão era
espionado e todos os detalhes de sua vida absolutamente controlados pelo
governo (o Big Brother), por meio de
um sistema de câmeras e comunicação eletrônica.
Na base do raciocínio do autor de Dying Light está a constatação de que, se por um lado esses
sistemas proporcionam os benefícios de melhores serviços públicos, maior
segurança e capacidade de prevenção de atividades criminosas, ao mesmo tempo
apresentam o grande risco de colocar nas mãos de quem exerce o governo o potencial
para asfixiar a opinião pública e destruir a base da democracia, que é o poder exercido
pelo povo e para o povo – não por e para quem exerce os poderes do Estado.
A partir do contexto real de prevenção e combate ao
terrorismo que se implantou nos mandatos de George W. Bush nos EUA e Tony Blair
na Grã Bretanha – e agora de Barack Obama – o livro de Henry Porter pinta uma situação imaginária em que o
primeiro-ministro inglês prepara simplesmente a instalação de uma ditadura,
graças a sistemas de comunicação e informação que lhe propiciam o controle
absoluto e total da vida e de todos os atos (inclusive atitudes políticas) dos
cidadãos.
O mais grave é que,
apesar de ser obra de ficção, como 1984,
o livro cita legislação real em vigor hoje na Inglaterra – e, pior ainda,
assinala que essas leis restritivas à liberdade individual foram
tranquilamente aprovadas e implantadas, com pouca discussão, debate ou reação
da complacente e acomodada opinião pública, interessada apenas na sua rotina da
vida diária e – como eu, quarenta anos atrás – sem levar em conta o risco
político embutido nessas leis.
Segundo Porter, num comentário publicado como posfácio ao
livro, “os britânicos passaram a ser os cidadãos mais estritamente controlados
do Ocidente, talvez de todo o mundo. Temos mais câmeras nas ruas que a soma de
aparelhos instalados em todo o resto da Europa. Essas câmeras infestam não só
as ruas e os shopping centers, mas
também restaurantes, cinemas e bares por toda parte, que fotografam a cabeça e
os ombros de cada individuo que neles entra.”
E prossegue: “As pessoas são vigiadas o tempo todo. Ao
viajar pelas rodovias todos são monitorados por câmeras que leem as placas dos
carros e os dados de cada viagem são armazenados por cinco anos.” E por aí vai.
Tudo abençoado por legislação vigente no país. O governo britânico,
segundo Porter, tem o direito de acessar os dados telefônicos e online de todas as pessoas, acompanhar e
registrar a vida de seus filhos num banco de dados nacional e exigir mais de 50
informações de cada cidadão que deseja sair de seu próprio país. Transações
individuais, dados sobre a saúde de cada um, tudo armazenado para sempre em
bancos de dados.
Um diploma legal que merece especial atenção em Dying Light é o Civil Contingencies Act 2004 (Lei de Contingências Civis, de 2004),
que, segundo Porter, “permite que o primeiro-ministro, um ministro ou o líder
do governo na Câmara desmantele da noite para o dia a democracia e o império da
lei”. Citando outros autores, ele comenta que essa lei permite ao governo a
suspensão de viagens, ocupação de propriedades, evacuação forçada, tribunais
especiais e detenção e prisão arbitrárias.
Seria importante que alguma editora publicasse esse livro em
português no Brasil. Deveriam lê-lo todos os que, no governo e fora dele, se
preocupam com a manutenção das nossas liberdades individuais, da liberdade de
expressão e de imprensa, no contexto maior dos direitos humanos, em face do
inapelável avanço dos recursos eletrônicos, que, por sua própria natureza,
tendem a se tornar cada vez mais invasivos e controladores. Da mesma forma que
as burocracias.
E também deveriam ler esse inquietante livro os que defendem
a unificação do número de identificação dos cidadãos; os que se opõem ou
resistem à Lei de Acesso à Informação Pública; os que escancaram abundantes informações e fotos de sua vida e
de seus amigos nos Facebooks da vida; os que criam e utilizam sistemas de “mineração de
dados” que permitem às empresas prever o comportamento, preferências e
tendências de consumo dos cidadãos; os que possibilitam que a moça da central
de telemarketing que nunca me viu na
vida me ligue à noite, em casa, me chamando pelo nome, para vender algum
produto.
É cada vez mais fácil usar todos esses mesmos recursos que
aumentam nossa eficiência e produtividade – e o muito mais que vem por aí na
tecnologia digital – também para nos invadir, nos controlar, nos manobrar e nos
dominar.
(**) Originalmente lançado pela editora britânica Orion
Books, o livro foi publicado também em edição norte-americana pela Atlantic
Monthly Press, com o título The Bell
Ringers. Ambas as edições podem ser adquiridas na Amazon, em forma impressa
ou eletrônica.
Olá Nemércio, tudo bem? Estou terminando um MBA em Comunicação Empresarial na Universidade Veiga de Almeida (Rio de Janeiro) e meu artigo final é sobre o Novo Perfil do Profissional de Comunicação Interna.
ResponderExcluirEu li seu livro 365 pedras e está me ajudando, mas quero buscar outras informações fazendo algumas perguntas para você, é possível? Você poderia me enviar seu email?
Agradeço antecipadamente
Obrigada
Abs
Carla
Respondo com prazer, Carla. Meu endereço é nemercio.nogueira@gmail.com
ResponderExcluirSe você não viu, veja no meu blog os textos "Como fazer um jornal de empresa", postado em 21/8/12 e "Que bicho é esse?", de 10/9/12.
Abraço