quarta-feira, 12 de junho de 2013

Big Brother chegou?

Esse escândalo do esquema de monitoramento de dados de telefone e internet, pela NSA-Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, que ocupa atualmente amplo espaço na imprensa mundial, produziu, segundo a Folha de S.Paulo de hoje, um aumento de 6.888%, em 24 horas, das vendas, pela Amazon, do livro 1984, de George Orwell, que apresentou ao mundo o Big Brother, o super-sistema de espionagem dos cidadãos, pelo governo, que o autor inglês criou em ficção para criticar a realidade dos governos ditatoriais.

Fast-back. Conheci há tempos o francês que presidia a Fundação Fredrik Rosing Bull, cujo nome homenageia um talentoso engenheiro norueguês que nasceu em 1882 e foi pioneiro no desenvolvimento tecnológico da Europa. Essa fundação foi criada pela Bull, empresa também batizada em homenagem a esse engenheiro, líder francesa do desenvolvimento da tecnologia digital, que atualmente, como Groupe Bull, atua em uma centena de países, inclusive o Brasil.

Na minha conversa com o presidente dessa Fundação – que estuda as conseqüências econômicas, sociais e humanas do emprego generalizado da informática – surpreendi-me quando ele disse que sua entidade era contrária à identificação das pessoas, pelo Estado, com um número único para cada indivíduo (RG, CPF, carteira de motorista, título de eleitor etc., todos com o mesmo número), coisa que, na minha santa ignorância, parecia lógica, eficiente, racional e facilitadora da vida das pessoas.

Essa conversa e a minha ignara perplexidade aconteceram há quarenta anos.

Dando um fast-forward para os dias de hoje, li recentemente um livro assustador (infelizmente ainda não publicado em português) que me recordou esse episódio. Chama-se Dying Light(**), do jornalista inglês Henry Porter, que vem-se dedicando à luta pelos direitos humanos, liberdades civis e de expressão na Grã Bretanha. Publicada em 2009, a obra veio à luz, por coincidência, exatamente 60 anos depois da primeira edição de 1984, do também inglês George Orwell, ficção que previa a instalação de uma ditadura mundial em que cada cidadão era espionado e todos os detalhes de sua vida absolutamente controlados pelo governo (o Big Brother), por meio de um sistema de câmeras e comunicação eletrônica.

Na base do raciocínio do autor de Dying Light está a constatação de que, se por um lado esses sistemas proporcionam os benefícios de melhores serviços públicos, maior segurança e capacidade de prevenção de atividades criminosas, ao mesmo tempo apresentam o grande risco de colocar nas mãos de quem exerce o governo o potencial para asfixiar a opinião pública e destruir a base da democracia, que é o poder exercido pelo povo e para o povo – não por e para quem exerce os poderes do Estado.

A partir do contexto real de prevenção e combate ao terrorismo que se implantou nos mandatos de George W. Bush nos EUA e Tony Blair na Grã Bretanha – e agora de Barack Obama – o livro de Henry Porter pinta uma situação imaginária em que o primeiro-ministro inglês prepara simplesmente a instalação de uma ditadura, graças a sistemas de comunicação e informação que lhe propiciam o controle absoluto e total da vida e de todos os atos (inclusive atitudes políticas) dos cidadãos.

O mais grave é que, apesar de ser obra de ficção, como 1984, o livro cita legislação real em vigor hoje na Inglaterra – e, pior ainda, assinala que essas leis restritivas à liberdade individual foram tranquilamente aprovadas e implantadas, com pouca discussão, debate ou reação da complacente e acomodada opinião pública, interessada apenas na sua rotina da vida diária e – como eu, quarenta anos atrás – sem levar em conta o risco político embutido nessas leis.

Segundo Porter, num comentário publicado como posfácio ao livro, “os britânicos passaram a ser os cidadãos mais estritamente controlados do Ocidente, talvez de todo o mundo. Temos mais câmeras nas ruas que a soma de aparelhos instalados em todo o resto da Europa. Essas câmeras infestam não só as ruas e os shopping centers, mas também restaurantes, cinemas e bares por toda parte, que fotografam a cabeça e os ombros de cada individuo que neles entra.”

E prossegue: “As pessoas são vigiadas o tempo todo. Ao viajar pelas rodovias todos são monitorados por câmeras que leem as placas dos carros e os dados de cada viagem são armazenados por cinco anos.” E por aí vai.

Tudo abençoado por legislação vigente no país. O governo britânico, segundo Porter, tem o direito de acessar os dados telefônicos e online de todas as pessoas, acompanhar e registrar a vida de seus filhos num banco de dados nacional e exigir mais de 50 informações de cada cidadão que deseja sair de seu próprio país. Transações individuais, dados sobre a saúde de cada um, tudo armazenado para sempre em bancos de dados.

Um diploma legal que merece especial atenção em Dying Light é o Civil Contingencies Act 2004 (Lei de Contingências Civis, de 2004), que, segundo Porter, “permite que o primeiro-ministro, um ministro ou o líder do governo na Câmara desmantele da noite para o dia a democracia e o império da lei”. Citando outros autores, ele comenta que essa lei permite ao governo a suspensão de viagens, ocupação de propriedades, evacuação forçada, tribunais especiais e detenção e prisão arbitrárias.

Seria importante que alguma editora publicasse esse livro em português no Brasil. Deveriam lê-lo todos os que, no governo e fora dele, se preocupam com a manutenção das nossas liberdades individuais, da liberdade de expressão e de imprensa, no contexto maior dos direitos humanos, em face do inapelável avanço dos recursos eletrônicos, que, por sua própria natureza, tendem a se tornar cada vez mais invasivos e controladores. Da mesma forma que as burocracias.

E também deveriam ler esse inquietante livro os que defendem a unificação do número de identificação dos cidadãos; os que se opõem ou resistem à Lei de Acesso à Informação Pública; os que escancaram abundantes informações e fotos de sua vida e de seus amigos nos Facebooks da vida; os que criam e utilizam sistemas de “mineração de dados” que permitem às empresas prever o comportamento, preferências e tendências de consumo dos cidadãos; os que possibilitam que a moça da central de telemarketing que nunca me viu na vida me ligue à noite, em casa, me chamando pelo nome, para vender algum produto.

É cada vez mais fácil usar todos esses mesmos recursos que aumentam nossa eficiência e produtividade – e o muito mais que vem por aí na tecnologia digital – também para nos invadir, nos controlar, nos manobrar e nos dominar.


(**) Originalmente lançado pela editora britânica Orion Books, o livro foi publicado também em edição norte-americana pela Atlantic Monthly Press, com o título The Bell Ringers. Ambas as edições podem ser adquiridas na Amazon, em forma impressa ou eletrônica.

2 comentários:

  1. Olá Nemércio, tudo bem? Estou terminando um MBA em Comunicação Empresarial na Universidade Veiga de Almeida (Rio de Janeiro) e meu artigo final é sobre o Novo Perfil do Profissional de Comunicação Interna.
    Eu li seu livro 365 pedras e está me ajudando, mas quero buscar outras informações fazendo algumas perguntas para você, é possível? Você poderia me enviar seu email?
    Agradeço antecipadamente
    Obrigada

    Abs

    Carla

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  2. Respondo com prazer, Carla. Meu endereço é nemercio.nogueira@gmail.com

    Se você não viu, veja no meu blog os textos "Como fazer um jornal de empresa", postado em 21/8/12 e "Que bicho é esse?", de 10/9/12.

    Abraço

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