No último dia 5 de Abril a edição online dos Estados Unidos de Rolling Stone se retratou totalmente
pela reportagem “Um Estupro no Campus”, publicada cinco meses antes pela versão
impressa.
Grotescos erros de reportagem e editoriais levaram a revista a cometer
uma “barriga” inaceitável para os elevados padrões de uma publicação desse
quilate, ao divulgar uma matéria simplesmente falsa, sobre um estupro que
jamais acontecera.
Ao procurar remediar esse desastre, porém, Rolling Stone acabou por transformá-lo em uma verdadeira aula magna,
proporcionada pela Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Trata-se de um documento de
grande interesse para quem pratica ou estuda a atividade jornalística, comunicação
social, relações públicas, direito, gestão de crise e gestão acadêmica – especialmente nesta época em que episódios de violência sexual e de outros tipos têm assolado as universidades brasileiras – enfim, para todos os
cidadãos que gostariam de conhecer melhor como funciona e como deve funcionar a
mídia profissional.
A história desse vexame e a análise de como e por que ocorreu estão
minuciosamente retratados no texto fluente e jornalístico a seguir, publicado
há duas semanas pela revista e que eu resolvi traduzir.
Rolling Stone e a
Universidade da Virginia: O Relatório da
Escola de Jornalismo da
Universidade de Columbia
Uma anatomia de um fracasso
jornalístico
“Um estupro no Campus”
O Que Deu
Errado?
NOTA DO EDITOR: Em Novembro
último nós publicamos uma matéria intitulada “Um Estupro no Campus” [edição
1223 da Rolling Stone], focalizando o apavorante
relato, por uma estudante da Universidade da Virginia (UVA), do estupro
coletivo que ela alegava haver sofrido na casa de uma fraternidade no campus.
Dias depois, começaram a surgir questionamentos de comentaristas sobre a
veracidade da nossa narrativa. A seguir, quando The Washington Post
revelou detalhes que sugeriam que a violência não poderia ter ocorrido da forma
que nós a descrevemos, a verdade da matéria se tornou um tema de controvérsia
nacional.
Ao perguntar a nós mesmos como é
que poderíamos ter feito uma matéria errada, decidimos que a única coisa
responsável e com credibilidade a fazer era pedir a alguém de fora da revista
que investigasse quaisquer lapsos na reportagem, edição e checagem dos fatos da
matéria. Procuramos Steve Coll, reitor da Escola de Jornalismo da Universidade
de Columbia e repórter que conquistou o Prêmio Pulitzer, que aceitou nossa
proposta. Oferecemos total cooperação e asseguramos também que ele e sua equipe
poderiam ter o tempo de que precisassem e escrever o que quisessem. Eles não
receberiam remuneração e nós prometemos publicar seu relatório na íntegra. (Uma
versão condensada do relatório será publicada na próxima edição da revista, em
8 de Abril.)
Esse relatório foi uma leitura
dolorosa, para mim pessoalmente e para todos nós na Rolling Stone. É também, ao seu jeito, um
documento fascinante – uma peça jornalística, como Coll a descreve – sobre um
fracasso do jornalismo. Com sua publicação, estamos renegando oficialmente “Um
Estupro no Campus”. Estamos também nos comprometendo a cumprir uma série de recomendações
sobre as práticas jornalísticas, que constam do relatório.
Gostaríamos de pedir
perdão a nossos leitores e a todos os que foram prejudicados por nossa matéria
e pelas más consequências que se seguiram, inclusive aos membros da
fraternidade Phi Kappa Psi, aos gestores e estudantes da UVA. A violência
sexual é um sério problema nos campi universitários e é importante que as
vítimas de estupro se sintam confortáveis em denunciá-la. Entristece-nos pensar
que sua disposição de fazê-lo possa ser diminuída por nossas falhas.
Will Dana, Editor Geral
No último dia 8 de Julho, Sabrina Rubin Erdely, redatora da Rolling Stone, telefonou para Emily
Renda, uma sobrevivente de estupro que trabalhava com questões de violência
sexual na Universidade da Virginia (UVA). Erdely disse que estava à procura de
algum caso emblemático de estupro universitário que demonstrasse “como é estar
num campus atualmente... onde não somente o estupro tanto prevalece, mas também
onde há essa difusa cultura de assédio sexual/cultura de estupro”, conforme
registrado nas anotações de Erdely sobre a conversa. 1
Renda disse a Erdely que muitos ataques ocorriam durante festas onde “o
objetivo é fazer todos caírem de bêbados”. E prosseguiu: “Pode haver um lado
muito mais escuro disso” em algumas fraternidades. “Uma garota com quem eu
trabalhei muito próxima alegou ter sofrido um estupro coletivo no outono, antes
do recesso, e os homens que o perpetraram eram jovens que ainda não eram
membros da fraternidade, e ela se lembra de que um deles disse a outro ‘Vamos
lá, cara, você não quer ser um irmão?’”
Renda acrescentou “E obviamente, talvez a lembrança dela sobre o fato
não seja perfeita.”
As anotações de Erdely registram sua resposta: “Eu digo a ela que é
totalmente plausível”.
Renda colocou a redatora em contato com uma promissora jovem estudante
da UVA que logo se tornaria conhecida por milhões de leitores da Rolling Stone como “Jackie”, uma versão
mais curta de seu real primeiro nome. Erdely disse mais tarde que, na primeira
vez em que se encontrou com Jackie, sentiu que a estudante “tinha um selo de
credibilidade” porque elas haviam sido aproximadas por uma funcionária da
universidade.
Pouco tempo antes, Renda havia até comparecido perante uma comissão do Senado e tinha feito
referência às alegações de Jackie
durante seu depoimento – outro aparente sinal da seriedade do caso. “Eu definitivamente teria interesse em divulgar minha história”,
escreveu Jackie num email alguns dias depois.
Em 14 de Julho Erdely telefonou para ela. Jackie passou a descrever
animadamente um crime monstruoso. Segundo as anotações de Erdely, ela
disse que em Setembro de 2012, no começo
de seu ano de caloura, um estudante do terceiro ano que ela conhecia como seu
colega salva-vidas no centro aquático da Universidade a havia convidado para
“minha primeira festa de fraternidade.” Depois da meia-noite, seu acompanhante
a levou para o andar de cima, em um quarto escuro. “Eu me lembro de olhar o
relógio e eram 12:52 quando nós entramos no quarto,” disse ela a Erdely. O
rapaz fechou a porta depois que os dois entraram. Jackie prosseguiu, segundo as
anotações da redatora:
Meus olhos estavam se
acostumando com o ambiente escuro. E eu disse o nome dele e me virei .... Ouvi
vozes e comecei a gritar e alguém me deu um soco e me mandou calar a boca. Foi
aí que eu tropecei e caí sobre a mesa de café e ela se espatifou sob mim e sob
um outro rapaz, que tinha se atirado em cima de mim. Aí um deles agarrou meus
ombros. ... Um deles tampou minha boca com a mão e eu mordi – e ele me deu um
soco no rosto. ... Um deles disse “Agarre a porra da perna dela”. Quando ele
disse isso eu percebi que eles iam me estuprar.
O restante do relato de Jackie era igualmente preciso e apavorante. O
salva-vidas gerenciou sete rapazes que a estupraram, um a um. Erdely desligou o
telefone “enojada e abalada”, disse ela. Ela se recordou de ter ficado “um
pouco incrédula” com o vigor de alguns detalhes que Jackie forneceu, como o
vidro quebrado da mesa destruída. No entanto Jackie fora “confiante, ela foi
consistente.” (Jackie não quis responder a perguntas para este relatório. Seu advogado
declarou que “é do maior interesse dela ficar em silêncio neste momento.” As
afirmações entre aspas atribuídas a Jackie neste texto foram extraídas de
anotações que Erdely informou ter datilogrado logo a seguir ou a partir de
entrevistas gravadas.)2
Entre Julho e Outubro de 2014, disse Erdely, ela entrevistou Jackie
outras sete vezes. A redatora trabalhava na Filadélfia e fazia reportagens para
Rolling Stone desde 2008. Ela era
especializada em matérias sobre crimes
reais, como “A Princesa Gangster de Beverly Hills”, a respeito de uma modelo
coreana de vida luxuosa, que se dizia herdeira da Samsung, acusada de
transportar sete mil libras de maconha. Havia escrito também sobre padres
pedófilos e violência sexual entre os militares. Will Dana, o editor geral da
revista, a considerava “uma repórter muito detalhista e impertinente, que é
capaz de navegar matérias extremamente difíceis com diversos pontos de vista
diferentes.”
Jackie demonstrou ser uma fonte desafiadora. Às vezes ela não retornava
os telefonemas, mensagens e e-mails de Erdely. Em duas ocasiões a repórter
temeu que Jackie fosse deixar de cooperar.
Além disso, Jackie se negou a dar a Erdely o nome do salva-vidas que
havia organizado o ataque contra ela. Disse que ainda tinha medo dele. Isso
levou a diálogos tensos entre Erdely e Jackie, mas a confrontação terminou
quando os editores de Rolling Stone
resolveram ir em frente sem saber o nome do salva-vidas nem obter confirmação
de sua existência. Depois dessa concessão, Jackie cooperou plenamente até a
publicação.
Erdely acreditava piamente que o relato de Jackie era confiável. Também
criam nela seus editores e a encarregada de checar os fatos da matéria, que
passou mais de quatro horas ao telefone com Jackie, revisando cada detalhe de
sua experiência. “Ela não respondia apenas ‘Sim, sim, sim’, ela me corrigia”,
disse a checadora. “Ela descrevia a cena para mim de forma muito vívida ... Eu
não tinha dúvida.” (Rolling Stone
pediu que não fosse mencionado o nome da responsável pela checagem porque ela
não tinha autoridade para tomar decisões.)
Rolling Stone publicou “Um Estupro no Campus: Um Ataque Brutal e Luta por Justiça na
UVA” em 19 de Novembro de 2014. A matéria causou grande sensação. “Fiquei
chocada por ter uma reportagem que fosse viralizada de tal forma”, disse
Erdely. “Meu telefone não parava de tocar.” A matéria online atraiu mais de 2,7
milhões de visitas, mais que qualquer outra que não fosse sobre uma
celebridade, jamais publicada pela revista.
Uma semana depois da publicação, na véspera do Dia de Ação de Graças,
Erdely falou por telefone com Jackie. “Ela me agradeceu muitas vezes”, disse
Erdely. Jackie parecia estar “com a adrenalina alta, sentindo-se realmente
muito bem.”
Erdely escolheu esse momento para revisitar o mistério do salva-vidas
que havia atraído Jackie e supervisionado o ataque contra ela. A negativa de
Jackie em lhe dar seu nome continuava a incomodar Erdely. Aparentemente o homem
ainda era perigoso e estava em liberdade. “Isto não é para publicar”, recordou
ter afirmado a redatora. “Você pode dizer só para mim?”
Jackie deu um nome a Erdely. Mas, ao datilografar, os dedos da repórter
pararam. Jackie não tinha certeza da grafia do sobrenome do salva-vidas. Jackie
especulou em voz alta sobre possíveis variações.
“Um alarme disparou na minha cabeça,” disse Erdely. Como é que a Jackie
podia não saber o nome exato de alguém que ela afirmou que havia cometido um
crime tão terrível contra ela – um homem que ela professava temer
profundamente?
Nos dias seguintes, preocupada com a integridade de sua matéria, a
repórter investigou o nome que Jackie havia dado, mas não conseguiu confirmar
que ele trabalhasse na piscina, fosse um membro da fraternidade que Jackie
havia identificado, ou tivesse qualquer outra conexão com Jackie ou com a
descrição que ela fizera de seu ataque. Ela discutiu sua inquietação com os
editores. Seu trabalho enfrentava novas pressões. O escritor Richard Bradley
havia publicado dúvidas especulativas sobre a plausibilidade do relato de
Jackie.
Escritores da Slate haviam manifestado reservas sobre a reportagem de
Erdely durante uma entrevista por podcast. Ela ficou sabendo também que T. Rees
Shapiro, um repórter do Washington Post,
estava preparando uma matéria baseada em entrevistas na Universidade de
Virgínia que colocaria sérias dúvidas sobre a reportagem da Rolling Stone.
Tarde da noite no dia 4 de Dezembro, Jackie enviou uma mensagem de texto
a Erdely e a repórter telefonou a ela. Já era mais de meia-noite. “Nós então
tivemos uma conversa que me levou a ficar com sérias dúvidas,” disse Erdely.
Ela telefonou para seu principal editor da matéria, Sean Woods e afirmou
que tinha perdido a confiança na precisão da descrição que havia publicado do
ataque a Jackie. Woods, que era editor da Rolling
Stone desde 2004, disse que “ficou aturdido”, prosseguindo: “Corrí para a
redação” para ajudar a decidir o que fazer a seguir. No mesmo dia, a revista
publicou uma nota do editor que efetivamente renegava a reportagem da Rolling Stone sobre as alegações feitas
por Jackie, de estupro coletivo na Universidade da Virginia. “Foi o pior dia da
minha vida profissional,” disse Woods.
***
O Fracasso e Suas Consequências
O repúdio,
pela Rolling Stone, da principal
narrativa em “Um Estupro no Campus”, é uma história de fracasso jornalístico
que poderia ter sido evitado. O fracasso abrangeu reportagem, edição,
supervisão editorial e checagem de fatos. A revista deixou de lado ou
racionalizou como desnecessárias práticas de reportagem que, se tivessem sido
efetuadas, provavelmente teriam levado os editores da revista a reconsiderar a
publicação da narrativa de Jackie de forma tão destacada, ou mesmo a decidir
não publicá-la. A matéria publicada disfarçava as falhas na reportagem da
revista usando pseudônimos e deixando de divulgar de onde haviam partido
importantes informações.
No fim de
Março, após quatro meses de investigação, a polícia de Charlottesville, na
Virginia, afirmou que havia “exaurido todas as pistas de investigação” e
concluído que “Não há base substantiva para suportar o relato alegado na
reportagem da Rolling Stone.”
A
detonação da reportagem constitui mais um choque para a credibilidade do
jornalismo, em meio a tantas mudanças radicais no mercado de mídia. Os
pormenores da falha da Rolling Stone
tornam clara a necessidade de se revitalizar um consenso, em novas e antigas
redações, sobre os requisitos das melhores práticas jornalísticas, no nível de
detalhamento dos manuais de operação.
Da mesma
forma que em outros jornais e revistas impressos outrora robustos, o corpo
editorial encolheu nos últimos anos, em decorrência da queda da receita
publicitária e de sua migração para o meio online. O pessoal editorial em tempo
integral, sem incluir os profissionais de arte ou fotografia, reduziu-se em 25%
desde 2008. No entanto a Rolling Stone
continua a investir em checadores profissionais e a financiar investigações que
consomem muito tempo, como a de Erdely. Os registros da revista e as
entrevistas com participantes mostram que o fracasso de “Um Estupro no Campus”
não se deveu a falta de recursos. O problema foi a metodologia, agravado por um
ambiente onde vários jornalistas com décadas de experiência coletiva deixaram
de expor e debater problemas com sua reportagem ou de atentar para os
questionamentos que receberam de uma colega encarregada da checagem.
Erdely e
seus editores tinham a expectativa de que sua investigação faria soar um alarme
sobre a violência sexual nos campi e desafiaria Virginia e outras universidades
a melhorar seu desempenho. Em vez disso, a falha da revista pode ter espalhado
a ideia de que muitas mulheres inventam alegações de estupro. (Cientistas
sociais que analisaram registros de crimes informam que 2% a 8% das alegações
de estupro são falsas.) Na Universidade da Virgínia, “Agora vai ficar mais
difícil engajar algumas pessoas ... porque elas têm uma noção pré-concebida de
que as mulheres mentem sobre violência sexual,” disse Alex Pinkleton, estudante
da UVA e sobrevivente de estupro que foi uma das fontes de Erdely.
Houve
outros danos colaterais. “Manchou completamente nossa reputação”, disse Stephen
Scipione, presidente regional da fraternidade Phi Kappa Psi, que Jackie
denunciou como o local de seu alegado ataque. “Destruiu completamente um
semestre de nossas vidas, especificamente da minha. Colocou-nos na pior posição
possível em nossa comunidade aqui, aos olhos de nossos pares e em classe.”
A
universidade também sofreu. O relato da Rolling
Stone ligou a cultura da fraternidade da UVA a um crime horrendo e
descreveu a administração como negligente. Alguns gestores da UVA cujas ações
no caso de Jackie foram descritas na reportagem foram retratados de forma depreciativa
e, dizem eles, falsa. Allen W. Groves, o reitor de estudantes da Universidade e
Nicole Eramo, uma reitora assistente de estudantes, escreveram individualmente
para os autores deste relatório afirmando que a descrição de suas ações foi
inexata.4
Em
retrospecto, Dana, o editor geral, que trabalha na Rolling Stone desde 1996, declarou que o fracasso da matéria
refletiu tanto uma “falha individual” como “uma falha de processo, uma falha
institucional. ... Cada uma das pessoas, em cada nível, desta coisa teve
oportunidades de puxar as rédeas com um pouco mais de força, de questionar as
coisas um pouco mais profundamente, e isso não foi feito.”
No
entanto os editores e Erdely concluíram que seu maior erro foi deixarem Jackie
por demais acomodada porque ela se colocou como sobrevivente de um terrível
ataque sexual. Cientistas sociais, psicólogos e especialistas em trauma que dão
apoio a sobreviventes de estupros têm convencido jornalistas a respeitar a
autonomia das vítimas, a evitar retraumatizá-las e a compreender que as
sobreviventes de estupro são tão confiáveis em seus testemunhos quanto as
vítimas de outros crimes. Essas percepções claramente influenciaram Erdely,
Woods e Dana. “Ao fim e ao cabo, nós agimos com deferência excessiva em nosso
trabalho de reportagem”, disse Woods. “Deveríamos ter sido muito mais duros e,
ao não agir assim, talvez tenhamos feito um desserviço a ela”.
Erdely
acrescentou: “Como essa matéria era sobre a Jackie, não consigo pensar em
muitas coisas que poderíamos ter feito de outro jeito. ... Talvez a discussão
não devesse ter sido tanto sobre a forma de acomodá-la, mas sim sobre se ela
deveria mesmo aparecer na reportagem.” Em sua investigação, Erdely soube de
outros casos oficialmente confirmados de estupro na universidade que poderiam
ter ilustrado sua narrativa, apesar de nenhum deles ser tão chocante e
dramático quanto o de Jackie.
No
entanto a explicação de que a Rolling
Stone falhou por ter sido excessivamente respeitosa com uma vítima não
demonstra adequadamente o que foi feito errado. As anotações de Erdely e suas
entrevistas com participantes evidenciam que a revista não foi atrás de
importantes linhas de reportagem, mesmo quando Jackie não lhes pediu para não
fazê-lo. Os editores fizeram julgamentos sobre atribuição, checagem de fatos e
comprovação que largamente aumentaram seus riscos de erro, mas tinham pouco ou
nada a ver com a proteção da posição de Jackie.
Seria
lamentável se a falha da Rolling Stone
viesse a tolher os jornalistas em investigações de alto risco sobre estupro, em
que pessoas ou entidades poderosas podem querer evitar o escrutínio, mas onde
os fatos podem ser pouco claros. Há uma obvia necessidade de compreensão e
debate mais profundos, entre os jornalistas e outras pessoas, sobre a melhor
maneira de fazer reportagens com sobreviventes de estupro, bem como sobre
alegações de violência sexual não oficialmente comprovadas. Este relatório irá
sugerir formas de se fazer isso. Tentará também esclarecer, no entanto, por que
o fracasso da Rolling Stone com “Um
Estupro no Campus” não precisava ter acontecido, mesmo levando em conta a
sensibilidade da revista com a posição de Jackie. Tem a ver principalmente com
o trabalho de reportagem e edição.
***
“De Que Outro Jeito Você Sugere Que Eu
Descubra?”
Na época em que os editores da Rolling
Stone encarregaram Erdely de fazer uma reportagem sobre violência sexual no
campus, na primavera de 2014, casos notórios de estupro em Yale, Harvard,
Columbia, Vanderbilt e Florida State já frequentavam as manchetes havia meses.
O Departamento de Direitos Civís do Ministério da Educação pressionava as
faculdades a reavaliar e aperfeiçoar suas normas. Em todo o país, gestores
acadêmicos tiveram de se ajustar a uma supervisão federal mais estrita, bem
como a uma nova geração de estudantes ativistas, inclusive mulheres que
declaravam abertamente ter sido estupradas na escola e não haver obtido
reparação pela justiça.
Havia numerosos relatos de casos de violência no campus que foram mal
administrados pelas universidades. Na de Columbia uma estudante aflita arrastou
um colchão pelo campus a fim de chamar atenção para seu relato de ataque e
injustiça. Por vezes os fatos desses casos eram contestados, mas eles haviam gerado
uma onda de ativismo no campus. “Minha idéia original,” afirmou Dana, era
“investigar um desses casos e publicar uma matéria focalizando principalmente o
processo do que acontece quando um ataque é denunciado e o tipo de questões que
isso suscita.”
A história de Jackie parecia forte candidata para uma narrativa assim.
Porém quando a ouviu, Erdely teve dificuldade para definir de que forma ela
conseguiria confirmar de maneira independente os detalhes que Jackie fornecera,
sem arriscar perder a cooperação de Jackie. No fim a repórter confiou
fortemente no auxilio de Jackie para ter acesso a evidências e entrevistas
confirmadoras. Erdely pediu que Jackie a apresentasse a amigos e familiares.
Pediu mensagens de texto que confirmassem trechos do relato de Jackie,
registros do emprego de Jackie no centro aquático e relatórios de saúde. Pediu
até para examinar o vestido vermelho manchado de sangue que Jackie disse ter
usado na noite em que relatou ter sido atacada.
Jackie deu alguma ajuda à repórter. Forneceu e-mails de um supervisor da
piscina como prova de seu emprego lá. Apresentou Ederly a Rachel Soltis, uma
caloura colega de quarto. Soltis confirmou que em Janeiro de 2013, quatro meses
após o alegado ataque, Jackie dissera a ela que havia sofrido um estupro coletivo.
Mas também era difícil assegurar a colaboração de Jackie. Outras
entrevistas que Jackie prometera conseguir nunca aconteceram. “Eu me sentia
frustrada, mas não achava que ela não quisesse fornecer” corroboração, disse
Erdely. Um belo dia Jackie contou a Erdely que sua mãe havia jogado fora o
vestido vermelho. Afirmou também que sua mãe concordaria em falar com Erdely,
mas a repórter declarou que, quando telefonou e deixou recados várias vezes, a
mãe não retornou as ligações.
Erdely poderia ter aprofundado a reportagem de diversas formas, por
conta própria, para confirmar o que Jackie lhe havia relatado. Jackie disse à
jornalista que um de seus estupradores fizera parte de um pequeno grupo de
debate em sua aula de antropologia. Erdely poderia ter procurado comprovar
independentemente a existência de tal grupo e identificar o jovem que Jackie
havia descrito. Poderia ter examinado as redes sociais da Phi Kappa Psi para
encontrar membros que ela pudesse entrevistar e encontrar evidências de uma
festa na noite que Jackie descrevera. Erdely poderia ter procurado estudantes
que trabalhassem no centro aquático e buscado pistas sobre o salva-vidas
descrito por Jackie.
Qualquer uma dessas e outras linhas de reportagem
similares poderiam ter levado a descobertas que teriam motivado a Rolling Stone a mudar de plano. Mas três
falhas de reportagem se destacam. Elas envolvem prática jornalística básica,
até rotineira – não um esforço investigativo especial. E se essas linhas de
reportagem tivessem sido seguidas, a Rolling
Stone muito provavelmente teria evitado problemas.
Três
amigos e “merda no ventilador”
Durante sua primeira entrevista, Jackie disse a Erdely que, após fugir
da fraternidade onde sete homens, instigados por seu acompanhante, a haviam
estuprado, pediu ajuda a três amigos.
Ela descreveu os dois rapazes e uma moça – agora ex-amigos, disse Jackie
a Erdely – chamados Ryan, Alex e Kathryn. Só deu os primeiros nomes deles,
segundo as anotações de Erdely. Afirmou que eles se encontraram com ela na
madrugada de 29 de Setembro de 2012, no campus. Jackie disse que a princípio
estava “chorando e chorando” e que só conseguia comunicar que “algo de ruim”
tinha acontecido. Declarou que seus amigos entenderam que ela havia sofrido um
ataque sexual. (Em entrevistas para este relatório, Ryan e Alex afirmaram que
Jackie lhes dissera que tinha sido forçada a fazer sexo oral em vários homens.)
Pelo relato de Jackie a Erdely, Ryan lhe recomendou que fosse ao centro
feminino da universidade ou a um hospital em busca de tratamento. Mas Alex e
Kathryn ficaram preocupados porque, se ela denunciasse um estupro, a vida
social deles seria afetada. “Ela vai ser a garota que gritou ‘estupro’ e nós
nunca mais vamos poder entrar outra vez numa festa de fraternidade”, dissera
Kathryn, segundo se recordava Jackie.
Jackie falou de maneira simpática sobre Ryan, mas a cena que descreveu
para a redatora da Rolling Stone era desfavorável aos três ex-amigos. A prática
jornalística – e o senso básico de equidade – exigem que, quando um repórter
pretende publicar informações depreciativas sobre alguém, busque ouvir a versão
dessa pessoa.
Erdely disse que, quando visitou a UVA, pediu ajuda à estudante Alex
Pinkleton, sobrevivente de um ataque, para identificar ou entrar em contato com
os três. (Pinkleton não era o “Alex” que Jackie mencionou em seu relato.) Mas
Pinkleton respondeu que precisaria pedir permissão a Jackie para auxiliar a
repórter. Erdely não deu sequência a isso com ela. Erdely poderia ter
identificado o trio de forma independente. Listas de amigos no Facebook
poderiam ter mostrado os nomes. Ou então Erdely poderia ter pedido ajuda a
outros estudantes, além de Pinkerton.
Em vez disso, Erdely se apoiou em
Jackie. Em 29 de Julho ela pediu auxílio a Jackie para falar com Ryan “para
corroborar aquela noite, uma segunda voz?” Segundo as anotações da jornalista,
Jackie respondeu que, apesar de “Ryan às vezes ser difícil, não entendo por que
ele não falaria”. Mas Jackie não deu resposta às mensagens de follow-up que
Erdely deixou.
Em 11 de Setembro Erdely viajou para Charlottesville e se encontrou com
Jackie pela primeira vez, num restaurante próximo ao campus da UVA. Com seu
gravador digital ligado, a repórter novamente pediu para conversar com Ryan.
“Eu falei com Ryan,” revelou Jackie. Ela disse que o havia encontrado por acaso
e perguntado se ele teria interesse em falar com a Rolling Stone. Em seguida Jackie citou a reação incrédula de Ryan:
“Não! ... Eu estou numa fraternidade aqui, Jackie, não quero derrubar o governo
grego e está parecendo que é isso que você quer que aconteça ... Eu não quero
me envolver nessa merda que você está querendo jogar no ventilador.”
“Evidentemente Ryan não vai topar”, disse Erdely a Jackie um pouco
depois.
No entanto Jackie nunca pediu – nem naquele momento nem mais tarde – que
a Rolling Stone deixasse de entrar em
contato com Ryan, Kathryn ou Alex de forma independente.
“Eu não diria que era
obrigação” da Jackie, disse Erdely posteriormente. Em vez disso ela se
preocupou: será que se “eu passar por cima da Jackie vou afastá-la do
processo?” Jackie às vezes era difícil de agarrar, o que levava Erdely a se
afligir com a possibilidade de que ela continuasse hesitante na sua cooperação.
Mas Jackie nunca disse que cairia fora se Erdely procurasse Ryan ou buscasse
outras linhas de reportagem por sua própria conta.
“Eles sempre estiveram na minha lista de pessoas” que deviam ser
procuradas, disse Erdely sobre os três. No entanto, afirmou, ficou ocupada em
conseguir uma reação da UVA ao caso de Jackie. Ela não se recorda de ter tido
uma conversa específica sobre esse assunto com seu editor Woods. “Nós só meio
que concordamos. ... Nós temos de deixar isso de lado.”
Woods, porém, se lembrou
de mais de uma conversa com Erdely sobre isso. Quando Erdely disse que havia
esgotado todas as possibilidades de encontrar os amigos, ele disse que
concordou em deixar para lá.
Se Erdely tivesse encontrado Ryan Duffin – seu verdadeiro nome – ele teria
afirmado que nunca dissera a Jackie que não se envolveria com a “merda no
ventilador” da Rolling Stone,
declarou Duffin numa entrevista para este relatório. A conversa toda com Ryan,
que Jackie descreveu para Erdely, “nunca aconteceu”, disse ele. Jackie nunca
havia tentado contatá-lo para cooperar com a
Rolling Stone. Ele não tinha encontrado Jackie ou se comunicado com ela
desde o último mês de Abril, disse.
Se Erdely ouvido o relato de Ryan, de que Jackie havia forjado sua
conversa, teria mudado de rumo imediatamente, para pesquisar outros casos de
estupro da UVA que fossem isentos desse tipo de contradições, disse ela
posteriormente.
Se Erdely tivesse ligado para Kathryn Hendley e Alex Stock – seus
verdadeiros nomes – para checar suas versões para o relato de Jackie sobre os
dias 28 e 29 de Setembro, eles teriam negado ter pronunciado qualquer das
palavras que Jackie lhes atribuiu (da mesma forma que Ryan também teria
negado). Eles teriam relatado a Erdely uma história de comunicações com Jackie
que teria deixado a repórter com muitos novos questionamentos.
Por exemplo, os
amigos afirmaram que Jackie lhes dissera que seu acompanhante em 28 de Setembro
era, não um salva-vidas, mas um estudante de sua aula de química chamado Haven
Monahan. (A polícia de Charlottesville informou em Março que não conseguiu
localizar um estudante da UVA ou qualquer outra pessoa chamada Haven Monahan.)
Todos os três amigos teriam conversado com Erdely, disseram, se tivessem sido
contatados.
O episódio reafirma um truísmo do trabalho de reportagem: Checar
informação depreciativa com as pessoas que são alvos de tais comentários é uma
questão de equidade, mas também pode produzir fatos novos e surpreendentes.
“Você pode comentar?”
Enquanto
fazia a reportagem, Erdely disse a Jackie e outros que desejava publicar o nome
da fraternidade onde Jackie disse ter sido estuprada. Erdely sentiu que Jackie
“estava segura” a respeito do nome da fraternidade: Phi Kappa Psi.
Em
Outubro último, quando concluía sua matéria, Erdely enviou um email a Stephen
Scipione, presidente regional da Phi Kappa Psi. “Fiquei sabendo de alegações de
estupro coletivo que foram feitas sobre a unidade da Phi Kappa Psi na UVA,”
escreveu Erdely. “Você pode comentar essas alegações?”
Era uma
versão decididamente truncada dos fatos que Erdely acreditava possuir. Ela não
revelou a informação de Jackie sobre a data do ataque. Não revelou que Jackie
dissera que a Phi Kappa Psi havia promovido um “evento para acompanhantes”
naquela noite, que candidatos potenciais estavam presentes, nem que o rapaz que
alegadamente orquestrou o ataque era um membro da Phi Kappa Psi, que era também
salva-vidas no centro aquático da universidade. Jackie não pedira que ela
deixasse de fornecer tais detalhes à fraternidade.
A
administração da universidade tinha recentemente informado à Phi Kappa Psi que
havia recebido um relato de ataque sexual na fraternidade, o qual, segundo
informado, tivera lugar em Setembro de 2012. Erdely sabia que a fraternidade
havia recebido um informe da UVA, mas não conhecia seu conteúdo específico. Na
verdade, nesse informe, declarou Scipione em recente entrevista, a UVA indicou
uma data em meados de Setembro como a noite do ataque – não 28 de Setembro. E o
informe não continha os detalhes que Jackie tinha dado a Erdely. A universidade
disse apenas que, segundo o relato que recebera, uma caloura tinha estado
bebendo numa festa, subira ao andar superior e fôra forçada a fazer sexo oral
com vários homens.
Em 15 de
Outubro Scipione respondeu ao pedido de comentário de Erdely. Escreveu ele por
email “que um indivíduo que permanece não-identificado havia supostamente
reportado a alguém que supostamente reportou à Universidade que, durante uma
festa, houvera um ataque sexual”. E acrescentou: “Apesar dessa alegação ser em
quarta mão e de não haver detalhes e de não constar o nome do acusador, a
liderança e a fraternidade como um todo encararam isto muito seriamente .”
A seguir
Erdely telefonou para Shawn Collinsworth, então diretor executivo nacional da
Phi Kappa Psi. Collinsworth deu espontaneamente um resumo do que a UVA havia
transmitido aos lideres da fraternidade: que houvera alegações de “estupro
coletivo durante festas da Phi Psi” e que um ataque “ocorreu em Setembro de
2012”.
Segundo
suas anotações, Erdely perguntou “Pode comentar?”
Se Erdely
tivesse fornecido a Scipione e Collinsworth todos os detalhes que possuía, em
vez de simplesmente pedir “comentário”, a fraternidade poderia ter investigado
os fatos que ela apresentasse. Depois que a Rolling
Stone foi publicada, a Phi Kappa Psi disse em entrevista que um exame
conduzido nos arquivos das redes sociais da fraternidade e nos registros
bancários demonstrou que a fraternidade não havia promovido evento para
acompanhantes ou outra festa na noite em que Jackie disse ter sido estuprada.
Uma comparação entre a lista de membros da fraternidade e os registros de
emprego do centro aquático demonstrou que nenhum de seus integrantes trabalhava
como salva-vidas, acrescentou Scipione.
Erdely
afirmou que Scipione tinha parecido “realmente vago”, então ela se concentrou
em conseguir uma resposta de Collinsworth. “Eu achei que tinha dado a ele plena
oportunidade para responder,” disse ela. “Eu acreditava totalmente que ele já
sabia quais eram as alegações porque eles tinham sido informados pela UVA.” Na
verdade, porém, a versão do ataque fornecida à Phi Kappa Psi era bem diferente
da que Jackie havia oferecido a Erdely – e menos detalhada.
Scipione
afirmou que a Rolling Stone não
forneceu a informação detalhada que a fraternidade requeria, para reagir de
forma apropriada às alegações. “Era completa bobagem,” disse ele. “Eles não
quiseram me dizer sobre o que iriam escrever. Não quiseram me dar quaisquer
datas ou detalhes”. Collinsworth declarou que também não recebeu os pormenores
do ataque que afinal saiu na Rolling
Stone.
Há casos
em que os repórteres podem resolver ocultar alguns detalhes do que pretendem
escrever, quando procuram confirmação, por temer que o objeto da matéria possa
“sair na frente”, publicando às pressas uma versão preventiva redigida de
maneira favorável. Há personagens jornalísticos sofisticados na politica e no
mundo empresarial que por vezes queimam repórteres dessa forma. Mesmo assim, é
arriscado para um jornalista ocultar informação depreciativa de qualquer alvo
de reportagem antes da publicação. Aqui aparentemente não havia por que temer
que a Phi Kappa Psi “saísse na frente.”
Ainda que
a Rolling Stone não confiasse nas
motivações da Phi Kappa Psi, caso tivesse dado à fraternidade uma chance de
examinar em detalhe as alegações, as discrepâncias factuais que a fraternidade
provavelmente teria indicado poderiam ter levado Erdely e seus editores a
tentar confirmar o relato de Jackie de forma mais aprofundada.
O mistério de "Drew"
Em suas
entrevistas, Jackie usou com liberalidade um primeiro nome – mas não o
sobrenome – do salva-vidas que ela disse ter orquestrado seu estupro. Em 16 de
Setembro, pela primeira vez, Erdely mencionou a possibilidade de localizar esse
homem.
“Tem
alguma ideia do que ele anda fazendo agora?” perguntou Erdely, segundo suas
anotações.
“Não, só
sei que ele se formou. Eu o bloqueei no Facebook,” respondeu Jackie. “Uma das
minhas amigas o procurou – ela queria vê-lo para que pudesse reconhecê-lo e
matá-lo,” afirmou Jackie, rindo. “Eu não podia nem olhar para sua página no
Facebook.”
“Como
você se sentiria se eu o procurasse para pedir um comentário?” perguntou Erdely,
de acordo com suas anotações.
“Não acho
que ficaria confortável com isso.”
Esse
diálogo iniciou um embate de seis semanas entre Erdely e Jackie. Durante algum
tempo pareceu a Erdely que o impasse poderia levar Jackie a deixar totalmente
de cooperar.
Em 20 de
Outubro Erdely voltou a pedir o sobrenome do rapaz. “Não vou usar o nome dele
na matéria, mas preciso fazer minha investigação correta, de qualquer forma,”
disse Erdely a Jackie, segundo suas anotações. “Eu imagino que ele não vá dizer
nada, mas é algo que eu preciso fazer.”
“Eu não
quero dar o sobrenome dele,” replicou Jackie. “Nem quero envolvê-lo nisto. ...
Ele me aterroriza completamente. Nunca tive tanto medo de uma pessoa na minha
vida inteira e eu nunca quis dizer o sobrenome dele a ninguém. ... Acho que uma
parte de mim pensava que ele nunca sequer ficaria sabendo da reportagem.”
“É claro
que ele vai saber da matéria,” disse Erdely. Vai lê-la. Provavelmente ele já
está sabendo da reportagem.”
Jackie
pareceu chocada, pelas anotações de Erdely. “Não quero ser eu a te dar o nome,”
disse Jackie.
“E como é
que você sugere que eu descubra?”
“Acho que
você poderia pedir à Phi Psi que lhe entregue a lista deles,” respondeu Jackie.
Depois
dessa conversa Jackie parou de retornar os telefonemas e mensagens de Erdely.
“Houve um ponto em que ela desapareceu por umas duas semanas,” afirmou Erdely
“e nós ficamos muito preocupados” sobre o bem-estar de Jackie. “O comportamento
dela parecia semelhante ao de uma vítima de trauma.”
No
entanto Jackie não fez qualquer exigência de que a Rolling Stone não tentasse identificar de forma independente o
salva-vidas. Até sugeriu uma maneira de fazer isso – checando o rol de membros
da fraternidade. Nem condicionou sua participação na matéria à concordância de
Erdely em não tentar identificar o salva-vidas.
Erdely procurou
identificar o rapaz por conta própria. Indagou de amigas de Jackie se podiam
ajudar. Elas ficaram na retranca. Procurou online para ver se as pistas que
tinha lhe permitiriam chegar a um nome completo. Isso não deu qualquer
resultado definitivo. “Ela foi muito agressiva sobre entrar em contato” com o
salva-vidas, disse Pinkleton, uma das estudantes a quem Erdely pediu auxílio.
Olhando
em retrospecto, para ter êxito Erdely provavelmente precisaria ter convencido
estudantes a acessar os registros de funcionários do centro aquático para
encontrar possíveis nomes idênticos. Isso poderia ter exigido tempo e sorte.
No final
de Outubro, com o fechamento da matéria previsto para daí a apenas duas
semanas, Jackie ainda se recusava a responder aos textos e mensagens de voz de
Erdely. Finalmente, em 3 de Novembro, depois de consultar seus editores, Erdely
deixou uma mensagem para Jackie propondo uma “solução” que permitisse que a Rolling Stone evitasse de vez entrar em
contato com o salva-vidas. A revista usaria um pseudônimo: acabaram escolhendo
“Drew”.
Depois
que Erdely capitulou nessa mensagem de voz, Jackie ligou de volta rapidamente.
Segundo Erdely, ela agora falou livremente sobre o salva-vidas, ainda sem usar
seu sobrenome. Desse ponto em diante, até a publicação da matéria, Jackie
cooperou.
Em
Dezembro Jackie declarou ao The
Washington Post numa entrevista que, depois de várias entrevistas com
Erdely, ela pedira para ser retirada da matéria, mas Erdely tinha recusado.
Jackie disse ao Post que mais tarde
concordou em participar, com a condição de poder checar os fatos de trechos de
sua história. Erdely afirmou numa entrevista para este relatório que ficou
completamente surpresa com as declarações de Jackie ao Post e que Jackie nunca lhe disse que queria ser retirada da
reportagem. Não há prova de tal diálogo entre Jackie e Erdely nos materiais que
Erdely forneceu à Rolling Stone.
Havia
realmente um salva-vidas do centro aquático que trabalhava na piscina ao mesmo
tempo que Jackie e tinha o primeiro nome que ela usara livremente com Erdely.
Mas ele não fazia parte da Phi Kappa Psi. A polícia o entrevistou e examinou
seus registros pessoais. Não encontrou evidências que o ligassem ao ataque a
Jackie.
Se a Rolling Stone o tivesse localizado e
ouvido sua reação às alegações de Jackie, inclusive o fato comprovável de que
ele não pertencia à Phi Kappa Psi, isso poderia ter feito Erdely reconsiderar
seu foco nesse caso. Seja como for, a Rolling
Stone parou de procurá-lo.
***
“O Que Eles Estão Escondendo?”
A ambição
de "Um Estupro no Campus" era ir além de narrar um ataque a uma
mulher. A meta era fazer uma investigação sobre a forma como as faculdades
trabalham com a violência sexual. A pauta era oportuna. Os sistemas que as
faculdades adotaram para enfrentar condutas sexuais impróprias passaram a ser
intensamente investigadas. Esses sistemas são obras em andamento, emaranhados
com regras federais mutantes e por vezes contraditórias, que buscam ao mesmo
tempo preservar a segurança dos estudantes, responsabilizar perpetradores e
proteger a privacidade de todos os estudantes.
As
questões jurídicas remontam a 1977, quando cinco moças estudantes processaram a
Universidade de Yale, argumentando que haviam sofrido assédio sexual. As
estudantes invocaram o Título IX das Emendas de Educação de 1972, uma lei
federal que proíbe discriminação de gênero na educação. Perderam a ação, mas
seu argumento – de que o assédio e a violência sexuais no campus ameaçavam o
acesso das mulheres à educação – acabou por prevalecer. Em meados da década de
1980 centenas de faculdades já haviam adotado procedimentos para enfrentar a má
conduta sexual, da perseguição ao estupro. Se as universidades deixassem de
agir dessa forma de maneira adequada, poderiam perder financiamentos federais.
No final
de 2009 o Centro pela Integridade Pública começou a publicar uma série de
artigos que ajudou a inspirar orientações federais ainda mais restritivas. Os
artigos puseram a nu problemas ocorridos com a primeira geração das reações do
campus: investigações mal-feitas por pessoal não-treinado; processos de
adjudicação sob o manto do segredo; e sanções tão débeis que por vezes
permitiam que estupradores, inclusive reincidentes, continuassem no campus
enquanto suas vítimas fugiam da escola.
O governo
Obama abraçou a causa. Pressionou as faculdades a adotar sistemas mais
rigorosos e baixou o patamar de culpabilidade para se condenar um estudante nos
tribunais escolares. A nova pressão causou confusão, no entanto e, em alguns
casos, acusações de injustiça. Em Outubro passado um grupo de professores da
Faculdade de Direito de Harvard escreveu que a nova política da universidade
para má conduta sexual estava “atirando fora o equilíbrio e a equidade, em sua
pressa para apaziguar certas autoridades do governo federal.”
A escolha
da Universidade da Virginia por Erdely como estudo de caso foi oportuna. Na
semana em que ela visitou o campus, uma caloura de 18 anos da UVA desapareceu e
mais tarde se descobriu que havia sido sequestrada e assassinada. Na época a
universidade havia sofrido diversos casos altamente notórios de ataque sexual.
O Departamento de Direitos Civís do Ministério da Educação havia submetido a
escola, juntamente com outras 54, a
ampla análise de sua conformidade com a legislação.
“O
objetivo maior da matéria,” escreveu Erdely em resposta a questionamentos do The Washington Post em Dezembro último,
não era Jackie e sim “a cultura que acolheu ela própria e tantas outras
mulheres da UVA que eu entrevistei, que apresentaram alegações, recebidas
apenas com indiferença.”
Erdely
considerou sua reportagem sobre a UVA como um exame, afirmou ela em uma
entrevista para este relatório, sobre “a forma como as faculdades trabalham com
este tipo de coisa.” Jackie “era apenas o exemplo mais dramático.”
“Um efeito congelante”
Após
ouvir a chocante história de Jackie, Erdely passou a se concentrar na obrigação
das universidades regidas por legislação federal a emitir advertências em tempo
adequado quando haja uma ameaça “séria ou contínua” à segurança dos estudantes.
Erdely entendeu que, oito meses depois do alegado ataque, Jackie havia relatado
à UVA que tinha sofrido estupro coletivo na casa da Phi Kappa Psi no campus, durante
um aparente trote. Em sua reportagem, a Rolling
Stone afirmou que a universidade havia sido descuidada ao não advertir seus
estudantes sobre essa fraternidade que parecia ser predatória.
Segundo a
polícia de Charlottesville, Jackie efetivamente se reuniu com a
reitora-assistente de estudantes Nicole Eramo em 20 de Maio de 2013. Informou a
polícia que nesse encontro Jackie descreveu seu ataque de maneira diferente da
que transmitiu mais tarde a Erdely, deixando de dar detalhes. De acordo com
membros da comunidade da UVA que conhecem o caso mas pediram para não ser
identificados para poderem falar sobre questões confidenciais da universidade,
Jackie recontou a Eramo a mesma história que havia compartilhado com os amigos
na noite de 28 de Setembro: Ela foi forçada a fazer sexo oral com diversos
homens numa festa de fraternidade. Segundo as fontes Jackie não nominou a
fraternidade onde o ataque ocorreu nem deu nomes ou detalhes sobre seus
atacantes. Não houve menção a trote. (Citando a privacidade dos estudantes e
investigações em andamento, a administração da UVA, por meio de seu
departamento de comunicação, não quis responder a perguntas sobre o caso.)
Ao longo
dos anos o Ministério da Educação tem emitido orientações que sublinham a
confidencialidade e autonomia das vítimas. Isso significa que as sobreviventes
decidem se querem reportar e que assistência gostariam de receber. “Se ela não
identificou pelo nome qualquer pessoa ou organização grega, a universidade
ficou muito, muito limitada no que pode fazer,” afirmou S.Daniel Carter, um
militante da segurança no campus e diretor da organização sem fins lucrativos
32 National Campus Safety Initiative.
Pela
reportagem da Rolling Stone, em sua
reunião de Maio de 2013 Eramo apresentou a Jackie suas opções: reportar o
ataque à policia ou ao Conselho de Má Conduta Sexual da universidade. A reitora
ofereceu também aconselhamento e outros serviços. Além disso entrou em contato
com Jackie nas semanas seguintes para saber se ela queria efetuar alguma ação.
E apresentou Jackie ao One Less, um grupo de estudantes composto de vítimas de
ataques sexuais e seus apoiadores.
A
universidade não emitiu advertência a essa altura porque Jackie não formalizou
queixa e seu relato não continha os nomes de atacantes nem uma fraternidade
específica, segundo fontes da UVA. Tampouco fazia menção a trote.
Entre
aquela data e Abril de 2014 a universidade não recebeu informação adicional
sobre o caso de Jackie, segundo a polícia e fontes da UVA.
Em 21 de
Abril de 2014 Jackie voltou a se reunir com Eramo, de acordo com a polícia.
Disse à reitora que agora estava sendo pressionada por seu visível ativismo no
campus junto a grupos de prevenção de ataques como o Take Back the Night,
segundo as fontes da UVA. Três semanas antes, disse ela, havia sido atingida no
rosto por uma garrafa atirada por manifestantes em frente a um bar de
Charlottesville. Acrescentou uma nova informação a seu relato anterior do
estupro coletivo a que havia sido submetida. Nominou a Phi Kappa Psi como a
fraternidade onde o ataque tinha ocorrido, disse mais tarde a polícia. Além
disso mencionou a Eramo duas outras estudantes que, segundo ela, haviam sido
estupradas naquela fraternidade. Mas não revelou os nomes dessas moças nem
quaisquer detalhes sobre seus ataques.
Quando há
informações com credibilidade sobre múltiplos atos de violência sexual pelo
mesmo perpetrador, que possam colocar estudantes em risco, as orientações do
Ministério da Educação indicam que a universidade deve agir, ainda que nenhuma
queixa tenha sido formalizada. A escola deve também examinar a hipótese de
emitir uma advertência de segurança pública. Uma vez mais, a Universidade da
Virgínia não fez a advertência. Se a administração deveria ter feito isso, à
luz da informação que possuía, é uma questão que está sendo examinada pelo
Conselho de Visitantes que governa a Universidade da Virginia, com a assessoria
de investigação e análise do escritório de advocacia O’Melveny & Myers. (Em
30 de Maio a UVA atualizou sua política de ataque sexual, incluindo
procedimentos mais claramente definidos para avaliar ameaças e emitir
advertências em tempo hábil.)
No dia
seguinte a seu encontro com a reitora, Jackie esteve com as polícias de
Charlottesville e da UVA num encontro promovido por Eramo. Jackie relatou tanto
o incidente da garrafa atirada quando seu ataque na casa da Phi Kappa Psi. Mais
tarde a polícia declarou que ela se negou a fornecer detalhes sobre o estupro
coletivo porque “temia retaliação da fraternidade se fosse adiante com uma
investigação criminal.” A polícia afirmou também que havia detectado
significativas discrepâncias na descrição feita por Jackie do dia em que disse
que fora atingida pela garrafa.
Naquele
verão Erdely começou a entrevistar diversas sobreviventes de ataques na UVA.
Dirigentes da universidade ainda esperavam que Jackie e as duas outras vítimas
por ela mencionadas formalizassem acusações, informaram fontes da UVA. Erdely
ficou sabendo do seguinte: Em 14 de Julho Emily Renda, que se havia formado em
Maio e assumido um emprego no departamento de assuntos estudantís da
universidade, disse à repórter que talvez não fosse prudente a Rolling Stone mencionar nominalmente a
Phi Kappa Psi em sua matéria porque “há duas outras mulheres que ainda não se
declararam completamente e nós estamos tentando convencê-las a buscar medidas
punitivas contra a fraternidade.” Renda enviou mais tarde um email para este
relatório indicando que havia tentado dissuadir a jornalista “devido a
preocupações com o devido processo e com a maneira pela qual acusações públicas
a uma fraternidade tanto poderiam evitar futuras ações da justiça como
infringir seus direitos.” A advertência de Renda a Erdely – um aviso de uma
funcionária da UVA de que a Phi Kappa Psi estava sob investigação da
universidade – reforçou a impressão de que a UVA considerava confiável a
narrativa de Jackie.
Como
ficou claro mais tarde, porém, todas as informações que a repórter, Renda e a
UVA possuíam sobre as duas outras vítimas reportadas, além de Jackie, provinham
exclusivamente de Jackie. Uma das moças postou um relatório anônimo no sistema
online da UVA – Jackie disse a Erdely que estava presente quando a estudante
pressionou o botão “enviar” – mas desde então nada mais se soube das duas
mulheres.
“Acho que pode parecer que estamos tentando esconder alguma coisa”
No começo
de Setembro Erdely pediu para entrevistar Eramo. A solicitação criou um dilema
para a UVA. As universidades precisam obedecer a um conjunto de leis federais
que limitam o que elas podem tornar público sobre seus estudantes. A mais
importante delas é a Lei de Direitos e Privacidade Educacional das Famílias, ou
FERPA, que protege a privacidade dos estudantes e dificulta para funcionários
de universidades a liberação de registros e a resposta a perguntas sobre
qualquer matriculado.
Eramo se
dispunha a falar, desde que não fosse indagada sobre casos específicos, mas
apenas sobre situações hipotéticas, como Erdely havia habilmente sugerido, para
contornar limitações referentes à privacidade dos estudantes.
“Como
[Erdely] me foi recomendada pelos estudantes por ela entrevistados, acho que
pode parecer que estamos tentando esconder alguma coisa se eu não falar com
ela,” disse Eramo num email ao pessoal de comunicação da UVA, recentemente
liberado em virtude de um pedido baseado na Lei de Liberdade de Informação.
O
departamento de comunicação autorizou a entrevista, mas a vice-presidente para
a Vida Estudantil Patricia Lampkin vetou a idéia. “Isto não tem a ver com
Nicole,” escreveu ela num email, “mas com a questão de como os repórteres
retorcem a questão.” Solicitada a esclarecer essa afirmação para esta análise,
Lampkin afirmou que, tendo em vista as restrições da FERPA, nada que Eramo
pudesse dizer em uma entrevista daria a Erdely “uma visão completa e
equilibrada da situação.”
A
desconfiança era mútua. “Eu tinha ido ao campus acreditando que eles iriam
ajudar bastante,” comentou Erdely. Agora ela sentia que estava sendo bloqueada.
Entre outras coisas, disse que Jackie e Alex Pinkleton lhe informaram que,
depois que a Rolling Stone começou a
fazer perguntas no campus, administradores da UVA contataram a Phi Kappa Psi
pela primeira vez a respeito das alegações de ataque sexual na casa da
fraternidade.
Para
Erdely, a UVA parecia estar procurando controlar os danos. “Então eu acho que,
em vez de ficar cética quanto à Jackie,”, disse, “fiquei cética com relação à
UVA. ... O que é que eles estão escondendo e por que estão agindo dessa forma?”
É verdade
que a UVA não contatou a Phi Kappa Psi até que Erdely aparecesse no campus.
Fontes da Universidade deram uma explicação. Disseram que os administradores
haviam pensado em suspender a licença da fraternidade, mas isso significaria
que a universidade não mais poderia fiscalizar a Phi Kappa Psi. Tinham também
evitado contatar a fraternidade no verão, na esperança de que Jackie e as
outras supostas vítimas entrassem com processo judicial contra ela. Isso não
havia acontecido, então eles resolveram agir, antes mesmo que Erdely começasse
a fazer perguntas, disseram as fontes. (Na época em que escrevíamos este
relatório, a universidade não havia dado a público qualquer prova documental
que suportasse o processo de tomada de decisão descrito por estas fontes.) Seja
como for, havia motivos para a Rolling
Stone se tornar cética. A história do trabalho da UVA com a má conduta
sexual é irregular, como Erdely ilustrou em outros casos que ela reportou.
Em 2 de
Outubro Erdely entrevistou Teresa Sullivan, presidente da UVA. A repórter fez
questionamentos penetrantes que revelaram o abismo entre o número de casos de
ataque que a universidade divulgou publicamente e os casos que foram levados ao
conhecimento da universidade internamente. Erdely descreveu as leves sanções
impostas aos estudantes culpados de má conduta sexual. Perguntou sobre
alegações de estupros coletivos na Phi Kappa Psi. Sullivan disse que uma
fraternidade estava sendo investigada, mas não quis fazer outros comentários
sobre casos específicos.
Após o
recente comunicado da polícia de Charlottesville, de que eles não haviam
encontrado base para a descrição do ataque a Jackie feita pela Rolling Stone, Sullivan fez uma
declaração. “A investigação confirma o que a lei federal de privacidade proibia
a universidade de divulgar no outono passado: Que a universidade proporcionou
apoio e atenção a uma estudante que necessitava, inclusive assistência na
denúncia aos agentes da lei de conduta potencialmente criminosa”, declarou.
Erdely
concluiu que a UVA não havia feito o suficiente. “Tendo presumivelmente julgado
que não havia ameaça,” escreveu ela na matéria publicada, a UVA “não agiu para
advertir o campus de que uma alegação de estupro coletivo fora feita contra uma
fraternidade ativa.” Em geral, acrescentou, “os estupros ficam ocultos” na UVA
em parte devido a “uma administração que, segundo críticos, está menos
preocupada em proteger os estudantes do que em proteger de escândalos sua
própria reputação.”
Durante
os seis meses em que trabalhou na reportagem, Erdely se concentrou nos relatos
de vítimas de violência sexual na Universidade da Virginia e em outros campi. Emocionou-se
com suas experiências e suas diversas frustrações. O acesso de Erdely aos
gestores da UVA era muito mais restrito, em parte porque alguns deles não
tinham autorização para falar com ela, mas também porque Erdely passou a
considerá-los obstáculos para seu trabalho de reportagem.
Na visão
de algumas fontes de Erdely, o retrato que ela criou foi injusto e errado. “A
resposta da universidade não é ‘Não nos importamos,’ disse Pinkleton,
confidente de Jackie e membro do One Less. “Quando informei sobre meu ataque,
eles imediatamente começaram a me dar recursos.”
De sua
parte, Eramo rejeita a sugestão da reportagem de que a UVA coloca sua própria
reputação acima da proteção aos estudantes. Em email fornecido por seus
advogados, a reitora escreveu que a matéria falsamente lhe atribui afirmações
que nunca fez (a Jackie ou a outros) e que o texto “trivializa as complexidades
do fornecimento de apoio a sobreviventes, levando em conta seu trauma, bem como
as reais dificuldades inerentes em equilibrar os desejos das sobreviventes com
o provimento de segurança a nossas comunidades.”
“A UVA
tem bastante a melhorar em relação à prevenção e resposta, da mesma forma que a
maioria, senão todas as faculdades,” afirmou Sara Surface, uma estudante que
co-preside a Coalizão pela Prevenção da Violência Sexual da UVA. E acrescentou:
“Os administradores e funcionários que trabalham diretamente com sobreviventes
e advogam por elas não estão mais interessados na reputação da faculdade, em
detrimento do bem-estar de seus estudantes.”
***
A Edição: “Gostaria Que Alguém
Tivesse Me Cobrado Mais”
Sean
Woods, o principal editor de Erdely, poderia ter evitado a retratação da
reportagem de Jackie se tivesse forçado a repórter a preencher os buracos de
seu texto. Ele começou sua carreira em jornalismo cobrindo assuntos musicais
mas já editava matérias complexas na Rolling
Stone havia anos. Os repórteres investigativos que trabalham em matérias
difíceis, emotivas ou controvertidas muitas vezes têm pontos cegos. Cabe aos
seus editores insistir em mais telefonemas, mais viagens, mais tempo, até que a
reportagem esteja completa. Woods não fez o suficiente.
O
publisher da Rolling Stone, Jann
Wenner, afirmou que em geral lê metade das matérias de cada edição antes da
publicação. Ele leu um rascunho da narrativa de Erdely e considerou o texto
“extremamente forte, poderoso, provocante. ... Achei que tínhamos ali algo
realmente muito bom.” Mas Wenner confia a supervisão editorial detalhada para o
editor geral Will Dana, que trabalha há quase duas décadas na revista. Dana poderia
ter examinado em maior profundidade os textos preliminares que leu, localizado
as falhas de reportagem e insistido para que fossem corrigidas. Ele não fez
isso. “É comigo mesmo,” disse Dana. “Eu sou responsável.”
Vista em
perspectiva, a decisão tomada pela Rolling
Stone que gerou maiores consequências foi aceitar que Erdely não tivesse
contatado os três amigos que falaram com Jackie na noite em que ela disse ter
sido estuprada. Essa seria a linha de reportagem que, se tivesse sido adotada,
quase certamente teria levado os editores da revista a mudar seus planos.
Erdely
afirmou que, quando se preparava para escrever o primeiro rascunho, conversou
com Woods sobre os três amigos. “Sean me recomendou que por enquanto devíamos
deixar isso de lado,” disse ela. “Ele até sugeriu que por ora eu mudasse os
nomes deles.” Woods afirmou que pretendia que essa decisão fosse temporária,
dependendo de mais trabalho de reportagem e análise.
Erdely
usou pseudônimos em seu primeiro rascunho: “Randall”, “Cindy” e “Andrew”. Baseou-se
exclusivamente nas informações dadas por Jackie e escreveu vividamente sobre a
maneira como os três amigos haviam reagido quando encontraram Jackie abalada e
chorando nas primeiras horas de 29 de Setembro:
Os membros do grupo se entreolharam em pânico.
Todos sabiam do encontro de Jackie naquela noite na Phi Kappa Psi, a imponente
casa atrás deles. “Temos de levá-la ao hospital,” declarou Randall. Os outros
dois amigos, porém, não se convenceram. “Será que é uma idéia tão boa?”
contraditou Cindy. ... “A reputação dela vai ficar
destruída pelos próximos quatro anos.”
Andrew concordou com a opinião. Os três amigos começaram uma acalorada
discussão sobre o custo social de reportar o estupro de Jackie, enquanto
Jackie, atrás deles, permanecia muda, em seu vestido ensanguentado.
Erdely
anotou em seu rascunho, em letras grandes “diz ela – tudo seu ponto de vista” –
para indicar a seus editores que diálogo viera somente de Jackie.
“Em
retrospecto, eu gostaria que alguém tivesse me cobrado mais” para contatar os
três a respeito de suas versões, disse Erdely. “Acho que fiquei surpresa por
ninguém ter dito ‘Por que você não telefonou para eles?’ Mas ninguém fez isso e
eu não quis insistir nesse assunto.” É
claro que não é só porque um editor não pede a um repórter que cheque
informações depreciativas sobre uma pessoa que isso absolve o repórter de
responsabilidade.
Woods tem
lembrança diferente dessa sequência. Depois de ler o primeiro rascunho, disse,
“Eu pedi à Sabrina para ir procurar” os três amigos. “Ela respondeu que não
podia. ... Perguntei repetidamente: ‘Podemos encontrar essas pessoas? Podemos?’
E me disseram que não.” Ele aceitou isso porque “Achei que tínhamos o suficiente.”
A evidência documental fornecida pela Rolling
Stone não esclarece qual das lembranças – de Erdely ou de Wood – é correta.
Woods
afirma que acabou aprovando os pseudônimos porque não queria embaraçar os três
estudantes com a publicação da descrição de Jackie sobre a tagarelagem
egocêntrica deles, para que todos os seus amigos e colegas vissem. “Eu quis
protege-los,” disse ele.
De sua
parte, Dana afirmou não se lembrar de ter falado com Woods ou Erderly sobre os
três amigos.
“Precisamos confirmar isto”
Nenhum
dos editores discutiu com Erdely se a Phi Kappa Psi ou a UVA, quando
solicitadas a comentar, tinham recebido detalhes suficientes sobre a narrativa
de Jackie, para poder mostrar falhas ou contradições. Erdely nunca mencionou o
assunto com seus editores.
Quanto a
“Drew”, o salva-vidas, Dana afirmou que sequer tinha conhecimento de que a Rolling Stone não sabia o nome completo
do rapaz e não havia confirmado sua existência. Nem lhe informaram que
“tivéssemos feito qualquer acordo com Jackie para não tentar localizar essa
pessoa.”
Como já
foi dito, não houve um pacto explícito sobre isso entre Erdely e Jackie,
segundo as anotações de Erdely. Jackie pediu que Erdely não contatasse o
salva-vidas, mas não houve um acordo.
“Você
pode ligar para a piscina? Pode ligar para a fraternidade? Pode examinar os
anuários?” Woods se recordou de ter perguntado a Erdely quando leu o primeiro
rascunho. “Se você tiver de contornar a Jackie, tudo bem, mas precisamos
confirmar isto,” referindo-se à identidade de Drew. Ele se lembrou de ter tido
essa discussão “pelo menos três vezes.”
Mas
quando Jackie se distanciou de Erdely no fim de Outubro, Woods e Dana
desistiram. Autorizaram Erdely a dizer a Jackie que iriam parar de tentar
encontrar o salva-vidas. Woods resolveu a questão do mesmo jeito que fizera com
os três amigos: usando um pseudônimo na matéria.
“Eu confiei”
No
jornalismo não é possível alcançar todas as fontes que um repórter ou editor
pode desejar. Uma solução é ser transparente com os leitores sobre o que é
conhecido ou não conhecido no momento da publicação.
Na edição
de revistas e narrativas há uma tensão entre a elaboração de uma matéria de boa
leitura – um texto que flua – e o fornecimento de clara atribuição de citações
e fatos. Escrever “ela disse” uma porção de vezes pode se tornar desajeitado e invasivo.
Deveria haver espaço no jornalismo de revistas para a diversidade da sonoridade
narrativa – se o trabalho de reportagem em que o texto se baseia for sólido.
Mas as mais notórias falhas escandalosas de transparência em “Um Estupro no
Campus” não podem ser debitadas ao estilo de redação. Elas toldavam importantes
problemas com o trabalho de reportagem da matéria.
-- Os editores da Rolling Stone não esclareceram aos leitores que Erdely e seus
editores não sabiam o verdadeiro nome de “Drew”, não tinham falado com ele e
não haviam conseguido confirmar que ele existia. Isso era fundamental para a
compreensão pelos leitores. Em um dos rascunhos da matéria Erdely incluiu uma
revelação. Escreveu que Jackie “se recusa a informar o nome completo [de Drew]
à RS,” porque ela está “dominada por temores que mal consegue articular.” Woods
cortou esse trecho ao editar a matéria. “Pensei em acrescentá-lo no final,” mas
“acabei resolvendo não fazê-lo,” disse.
-- Woods concordou em incluir na matéria
a citação de “Randall” sobre “merda no ventilador” sem esclarecer que Erdely
não a havia ouvido dele e sim de Jackie. “Eu tomei essa decisão,” disse Woods.
Isso não só iludiu os leitores sobre a origem da citação, mas também agravou a
falsa impressão de que a Rolling Stone
sabia quem era “Randall” e havia tentado obter as versões dele e dos outros
amigos sobre a história.
Os
editores investiram a reputação da Rolling
Stone em uma única fonte. “Sabrina é uma redatora com quem venho
trabalhando há tanto tempo, em quem ponho tanta fé, que realmente confiei em
seu julgamento de que Jackie tinha credibilidade,” afirmou Woods. “Questionei-a
muito sobre isso e ela sempre disse que a considerava completamente crível.”
Woods e
Erdely sabiam que Jackie havia falado sobre seu ataque com outros ativistas no
campus, com pelo menos uma colega de quarto e com a UVA. Não podiam imaginar
que Jackie tivesse inventado uma história assim. Woods afirmou que ele e Erdely
“ambos chegamos à decisão de que esta pessoa estava dizendo a verdade.” Eles a
consideravam uma “denunciante” que combatia a indiferença e a inércia na
universidade.
O
problema do viés da confirmação – a tendência das pessoas caírem na armadilha
de presunções pré-existentes e darem preferência a fatos que suportam suas
próprias opiniões, em detrimento dos que as contradizem – é uma constatação bem
aceita das ciências sociais.
Isso parece ter sido um dos fatores neste caso.
Erdely acreditava que a universidade estava obstruindo a justiça. Achava que
havia sido bloqueada. Como muitas outras universidades, a UVA tinha um retrospecto
de falhas no trato de casos de ataque sexual. A experiência de Jackie parecia
confirmar esse contexto mais amplo. Sua história parecia bem solidamente
estabelecida no campus, repetida e aceita.
“Se eu
tivesse sido informado anteriormente de algum problema ou discrepância na
matéria, teríamos agido sobre isso muito agressivamente,” disse Dana. “Havia
várias outras histórias que poderíamos ter contado nessa reportagem.” Se alguém
tivesse exprimido dúvidas sobre até que ponto a narrativa de Jackie era
confirmável, seu caso poderia ter sido resumido “em um parágrafo, num canto da
matéria.”
Nenhuma
dúvida como essa foi trazida a sua atenção, afirmou ele. Quanto às aparentes
falhas no trabalho de reportagem e confirmação que se haviam acumulado nos
rascunhos da matéria, disse Dana: “Eu confiava que, na fase de checagem dos
fatos, tudo isso iria ser corrigido.”
***
Checagem Dos Fatos: “Não Ganho
P´ra Isso”
Na Rolling
Stone, cada matéria é confiada a um checador. Nas redações de jornais,
agências de notícias e mídia eletrônica, não há uma descrição de função como a
dos checadores de fatos das revistas. Nos jornais, os repórteres e editores da
linha de frente são responsáveis pela exatidão e completude das matérias. Os
setores de checagem das revistas em geral empregam jovens repórteres ou
recém-formados. Seu trabalho é rever a matéria de um redator após ter sido
rascunhada, para re-checar detalhes como datas e descrições físicas.
Além disso
eles observam questões como a atribuição [de citações] e se as pessoas
retratadas de forma desfavorável foram ouvidas. Geralmente os checadores falam
com as fontes dos redatores, por vezes também com fontes confidenciais, para
confirmar fatos mencionados em citações e outros pormenores. Para serem
eficazes, os checadores precisam ter o poder de desafiar as decisões de
redatores e editores que podem ser muito mais velhos e experientes.
Neste
caso, a checadora a quem se confiou “Um Estupro no Campus” vinha fazendo esse
trabalho como freelancer havia cerca de três anos e se tornara funcionária um
ano e meio antes .
Ela
confiou muito em Jackie, da mesma forma que Erdely. Disse que “também era
conhecedora de que a UVA acreditava que essa história fosse verdadeira.” Isso
foi um mal-entendido. O que a Rolling
Stone sabia no momento da publicação era que Jackie havia dado uma versão
de seu relato à UVA e a outros estudantes ativistas. Uma funcionária da UVA,
Renda, tinha feito referência a esse relato em um depoimento no Congresso. A
UVA havia posto a Phi Kappa Psi sob investigação. Nada disso significava que a
universidade houvesse chegado a alguma conclusão sobre a narrativa de Jackie. A
checadora não forneceu à escola detalhes sobre o relato que Jackie deu a Erdely
sobre seu ataque na Phi Kappa Psi.
A
checadora tentou aprimorar o trabalho de reportagem da matéria e a atribuição
de citações dos três amigos. Marcou num rascunho que Ryan – sob o pseudônimo
“Randall” – não tinha sido entrevistado e que seu comentário sobre “merda no
ventilador” tinha vindo de Jackie. “Atribuir isto a Jackie?” escreveu a
checadora. “Há algum jeito de confirmar com ele?” Ela declarou que havia falado
sobre esse problema de clareza com Woods e Erdely. “Eu pressionei. ... Eles
chegaram à conclusão de que se sentiam confortáveis” em não tornar claro para
os leitores que nunca haviam contatado Ryan.”
Ela não
levou essas preocupações a sua chefe, Coco McPherson, que lidera o departamento
de checagem. “Instruí meus funcionários a vir a mim quando encontram problemas
ou ficam preocupados ou acham que precisam de algum apoio mais forte,” afirmou
McPherson. “Isso não aconteceu.” Indagada se havia alguma coisa sobre a qual
ela deveria ter sido notificada, McPherson respondeu: “As respostas óbvias são
os três amigos. Essas decisões de não procurar essas pessoas foram tomadas por
editores que ganham mais que eu.”
McPherson
leu o texto final. Era uma matéria provocante, complexa, fortemente baseada em
uma única fonte. Ela declarou mais tarde que confiava em todos os envolvidos e
não viu necessidade de questionar qualquer ponto com os editores. Ela era a
chefe do departamento com responsabilidade final pela checagem dos fatos.
Natalie
Krodel, advogada da Wenner Media, fez uma análise jurídica da matéria antes da
publicação. Krodel era funcionária havia vários anos e em geral se ocupava de
cerca de metade das análises pré-publicação das matérias da Rolling Stone, compartilhando o trabalho
com o advogado geral Dana Rosen.5 Não ficou claro quais os
questionamentos que a advogada pode ter feito sobre o texto. Erdely e os
editores se negaram a responder a perguntas sobre aspectos específicos da
análise jurídica, citando instruções recebidas da advogada externa da revista,
Elizabeth McNamara, sócia do escritório Davis Wright Tremaine. McNamara afirmou
que a Rolling Stone não responderia a
perguntas sobre a análise jurídica de “Um Estupro no Campus” a fim de proteger
a relação privilegiada entre advogado e cliente.
***
A Nota do Editor: “Surtei
completamente”
Em 5 de
Dezembro, depois que Erdely declarou, logo cedo, que tinha perdido a confiança
em sua fonte, Rolling Stone postou em
seu website uma nota do editor que efetivamente renegava a reportagem da
revista sobre o caso de Jackie.
A nota
foi redigida e publicada precipitadamente. Os editores tinham ouvido dizer que The Washington Post pretendia publicar
uma matéria no mesmo dia, questionando a reportagem da revista. Souberam também
que a Phi Kappa Psi iria emitir um pronunciamento pondo em dúvida parte do
relato da Rolling Stone. Dana afirmou
que não havia tempo para realizar uma “investigação forense” sobre os problemas
da matéria. Ele escreveu a nota do editor “muito rapidamente” e “sob muita
pressão.”
Postou-a
por volta do meio-dia, com sua assinatura. “Tendo em vista novas informações,
agora parece haver discrepâncias no relato de Jackie e chegamos à conclusão de
que nossa confiança nela não se justificava”, afirmava. Essa linguagem
transferia a culpa da revista para sua entrevistada e atraiu ainda mais
críticas. Dana disse que se arrependia de sua escolha de palavras. “Surtei
completamente,” disse ele. “E logo lamentei ter usado a frase.” No começo da
noite ele mudou de curso em uma série de tweets. “Essa falha é nossa – não
dela,” escreveu. Uma nota do editor modificada, usando linguagem semelhante,
foi publicada no dia seguinte.
No
entanto a versão final ainda se esforçava em defender o desempenho da Rolling Stone. Dizia que os amigos de
Jackie e estudantes ativistas na UVA “apoiavam vigorosamente seu relato.” Isso
implicava que esses amigos tinham conhecimento direto do estupro relatado. Na
verdade os estudantes apoiavam Jackie como uma sobrevivente, amiga e
companheira na campanha pela reforma do campus. Tinham ouvido sua história, mas
não tinham como confirma-la de maneira independente.
***
Olhando à Frente
Para Rolling
Stone: Um Lapso Excepcional ou uma Falha na Política?
O colapso
de “Um Estupro no Campus” não implica o tipo de forjamento por repórteres,
ocorrido em alguns outros casos infames de desastres jornalísticos. Em 2003 o
repórter Jayson Blair do New York Times
se demitiu quando os editores concluíram que ele havia inventado matérias inteiras. Em Fevereiro a NBC News suspendeu o âncora
Brian Williams quando ele admitiu ter mentido sobre sua cobertura da guerra no
Iraque. Não há evidências nos materiais de Erdely ou nas entrevistas que fez de
que ela tenha inventado fatos; o problema foi ela ter confiado no que Jackie
lhe disse, sem confirmar sua precisão.
“Foi uma
experiência extraordinariamente dolorosa e humilhante,” disse Woods. “Eu
aprendi que mesmo as pessoas mais confiáveis e experientes – inclusive e talvez
especialmente eu – podem fazer graves erros de julgamento.”
No
entanto os editores de Rolling Stone
são unânimes em acreditar que o fracasso da matéria não requer que eles
modifiquem seus sistemas editoriais. “Não que eu ache que precisamos reformar
nosso processo e não creio que precisemos necessariamente instituir uma porção
de maneiras novas de fazer as coisas,” afirmou Dana. “Apenas temos de fazer o
que sempre fizemos, mas nos certificarmos de que não cometeremos esse erro
novamente.” Coco McPherson, a chefe da checagem, afirmou: “Eu cem por cento não
acho que as políticas que adotamos tenham falhado. Acredito que as decisões
tomadas circundando essas normas se deveram ao assunto da reportagem.”
No entanto
diretrizes melhores e mais claras sobre as práticas de reportagem, pseudônimos
e atribuição poderiam muito bem ter evitado os erros da revista. O setor de
checagem deveria ter sido mais firme em questionar decisões editoriais que a
checadora da reportagem justificadamente observou. Dana disse que não fora
informado de buracos na matéria, como deixar de contatar os três amigos, nem
sobre o emprego de atribuições ilusórias para obscurecer esses fatos. Normas
mais fortes e uma compreensão mais clara por parte dos funcionários em pelo
menos três áreas poderiam ter mudado o resultado final:
Pseudônimos. Dana, Woods e McPherson
afirmaram que o uso de pseudônimos na Rolling
Stone é uma questão resolvida “caso a caso”, que dispensa reunião ou
revisão especial. Pseudônimos são inerentemente indesejáveis no jornalismo.
Eles introduzem ficção e pedem aos leitores que confiem em que esta é a única
instância em que uma publicação está inventando detalhes a seu bel-prazer. Seu emprego
neste caso foi uma muleta – permitiu que a revista se evadisse de encarar as
falhas de reportagem. A Rolling Stone
deveria pensar na possibilidade de baní-los. Se seus editores acham que os
pseudônimos são uma ferramenta indispensável para suas formas de redação de
narrativas, a revista deve considerar emprega-los muito mais raramente e só
após robusta discussão sobre alternativas, encorajando-se as discordâncias.
Checagem de Informações Depreciativas. Erdely
e Woods fizeram o fatídico acordo de não checar com os três amigos. Se o setor
de checagem tivesse compreendido que essa prática é inaceitável, o resultado
quase certamente teria sido outro.
Confrontar Entrevistados Com Detalhes. Quando
Erdely pediu “comentários” perdeu a oportunidade de ouvir refutações detalhadas
da Phi Kappa Psi antes da publicação. A checadora confiou somente nas
comunicações de Erdely com a fraternidade e não confirmou pessoalmente com a
Phi Kappa Psi a descrição que a Rolling
Stone pretendia publicar sobre o ataque de Jackie. Se tanto a repórter como
a checadora tivessem entendido que a política exigia que, como rotina, elas
deveriam compartilhar detalhes depreciativos específicos com os alvos de sua
reportagem, a Rolling Stone poderia
ter mudado de direção.
Para Jornalistas: Cobrindo Estupros no Campus
Rolling
Stone não é a primeira organização jornalística a ser duramente
criticada por sua cobertura de estupros. De todos os crimes, talvez o estupro
seja o mais difícil de cobrir. As dificuldades comuns que os repórteres
encontram – inclusive a escassez de provas e os relatos contraditórios – podem
ser ampliadas no cenário das faculdades. Reportar um caso que não foi
investigado e adjudicado, como fez a Rolling
Stone, pode ser ainda mais desafiador.
Há
diversas áreas que exigem cuidado e devem ser objeto de contínua reflexão entre
os jornalistas:
Equilibrar a sensibilidade para com as vítimas e os
requisitos de confirmação.
Ao longo
dos anos os conselheiros para traumas e grupos de apoio a sobreviventes têm
auxiliado os jornalistas a compreender a vergonha ligada ao estupro e a
sensação de impotência e auto-culpa que podem dominar as vítimas,
particularmente as jovens. Como o questionamento do relato de uma vítima pode
ser traumático, os conselheiros têm recomendado prudência para permitir que as
sobreviventes mantenham algum controle sobre suas próprias histórias. Esse é um
bom conselho. No entanto não é bom para as sobreviventes que os repórteres que
documentam seus casos evitem rigorosas práticas de confirmação. Isso pode
apenas submeter a vítima a maior escrutínio e ceticismo.
Surgem
problemas quando os termos de um pacto entre sobrevivente e jornalista não são
explicitados. Kristen Lombardi, que passou um ano e meio trabalhando na série
de reportagens do Centro para a Integridade Pública sobre ataque sexual nos
campi, afirmou que ela deixava claro para as mulheres que entrevistava que o
processo de reportagem requeria que ela obtivesse documentos, reunisse provas e
falasse com o máximo possível de pessoas envolvidas no caso, inclusive os
acusados. Ela prefaciava suas entrevistas assegurando às mulheres que acreditava
nelas, mas que era do próprio interesse delas certificar-se de que não houvesse
dúvidas sobre a veracidade de seus relatos. Ela também permitia que as vítimas
mantivessem algum controle, inclusive determinando o local, horário e ritmo de
suas entrevistas.
Se alguma
mulher não estivesse pronta para esse processo, disse Lombardi, ela se dispunha
a ir embora.
Corroborando relatos de sobreviventes. Walter
Bogdanich, um repórter investigativo do New
York Times agraciado com o Prêmio Pulitzer, que passou os últimos dois anos
reportando casos de estupro no campus, declarou que procura localizar cada
fiapo disponível de evidência – registros hospitalares, telefonemas para o
serviço de emergência, mensagens de texto ou e-mails que tenham sido enviados
imediatamente após o ataque. Em alguns casos, pode ser possível obter vídeos,
seja de câmeras de segurança ou de celulares.
Muitos
ataques ocorrem ou começam em locais semipúblicos como bares, festas ou casas
de fraternidades. “A violência sexual no campus provavelmente tem mais
testemunhas, passantes etc. do que a violência em outros contextos,” afirma
Elana Newman, professora de psicologia da Universidade de Tulsa, que aconselhou
jornalistas sobre trauma. “Pode ser útil para os jornalistas pensar em todos os
sinais e signos ocorridos anteriormente” e sobre as pessoas que os viram ou
ignoraram, disse ela.
Cada caso
de estupro tem múltiplas narrativas, disse Newman. “Se houver inconsistências,
explique essas inconsistências.” Os repórteres devem também ter em mente que o
trauma pode prejudicar a memória de uma vítima e que isso pode ser uma causa de
relatos fragmentados e contraditórios.
As
vítimas frequentemente interagem com administradores, conselheiros e
funcionários de alojamentos. “Eu sempre encontrei maior disposição para falar
junto a esses funcionários da linha de frente,” afirmou Lombardi, que disse ter
telefonado ou visitado fontes potenciais em casa e falado com elas sobre
informações de background devido a suas preocupações com a privacidade dos
estudantes.
As
restrições da FERPA são severas, mas a lei permite que os estudantes consultem
os registros de suas próprias escolas. Os estudantes de universidades públicas
podem também assinar documentos que dispensam a privacidade, que podem permitir
que os repórteres obtenham registros deles próprios, inclusive arquivos e
relatórios sobre um caso.
Além
disso a FERPA abre uma exceção: Em casos de ataque sexual que tenham chegado a
uma decisão final e em que um estudante tenha sido declarado responsável, as
autoridades do campus podem divulgar o nome do estudante, a violação cometida e
quaisquer sanções impostas. (O Centro Jurídico da Imprensa Estudantil fornece
bom aconselhamento sobre como trabalhar com a FERPA.)
Forçar as
instituições a prestar contas. Devido às dificuldades, os
jornalistas poucas vezes têm condição de provar culpa ou inocência em casos de
estupro. “O real valor do que fazemos como jornalistas é analisar a resposta
das instituições à acusação”, afirma Bogdanich. Essa postura pode também tornar
mais fácil convencer tanto as vítimas como os perpetradores a falar. Lombardi
declarou que as mulheres que entrevistou se dispuseram a falar porque a matéria
era sobre como o sistema funcionava ou não funcionava. O acusado, por outro
lado, frequentemente se abria para falar sobre falhas percebidas no processo
judicial.
Para ter
êxito nesse tipo de reportagem é necessário possuir profunda compreensão do
emaranhado de regras e orientações sobre ataques sexuais no campus. Há o Titulo
XI, a Lei Clery e a Lei sobre Violência Contra Mulheres. Há diretivas do
Escritório de Direitos Civis e recomendações da Casa Branca. O Congresso e as
legislaturas estaduais estão propondo novas leis.
As
responsabilidades que as universidades têm em prevenir o ataque sexual no
campus – e os padrões de desempenho que lhes devem ser exigidos – são assuntos
importantes de interesse público. A Rolling
Stone estava certa em cobrá-las. A forma do fracasso da revista é um mapa
de como fazer isso melhor.
NOTAS:
1.
1. Este relatório pretende ser um trabalho
jornalístico sobre um fracasso do jornalismo. Em Novembro último a Rolling Stone publicou “Um Estupro no
Campus”, por Sabrina Rubin Erdely. Sua principal narrativa descrevia um
horrendo estupro coletivo numa fraternidade da Universidade da Virgínia. No
começo de Dezembro Rolling Stone
efetivamente se retratou por essa narrativa.
Várias semanas mais tarde a revista procurou a
Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia para realizar uma investigação
sobre o que tinha dado errado. Rolling
Stone proporcionou acesso às anotações de Erdely para a reportagem, bem
como a rascunhos da matéria. Os autores tiveram a liberdade de investigar e
escrever sobre qualquer assunto relacionado com “Um Estupro no Campus” que
julgassem relevantes e de interesse público.
Durante vários meses os autores fizeram entrevistas
e investigações em amplo espectro. No entanto o relatório final não se propõe
enciclopédico. O relatório procura atingir diversos objetivos. Um deles é
iluminar os motivos-chaves pelos quais o insucesso da Rolling Stone era evitável e extrair lições. A esse respeito o
relatório focaliza várias falhas do trabalho de reportagem, edição e supervisão
da Rolling Stone, mas não
absolutamente todos os passos errados que poderiam ser inventoriados. Outro
propósito do relatório é avaliar de forma independente e por meio de um novo
trabalho de reportagem alguns dos personagens que Rolling Stone cobriu na matéria, além do relato dado por Jackie do
ataque sexual que sofreu – particularmente a linha de tempo da maneira como a
UVA trabalhou com a informação de Jackie. O relatório abrange também as formas
pelas quais as diretrizes editoriais da Rolling
Stone poderiam ser revistas para evitar futuros fracassos. E avalia de que
modo os jornalistas poderiam começar a definir melhores práticas para escrever
reportagens sobre casos de estupro no campus ou em outros locais.
Os funcionários da Rolling Stone cooperaram plenamente durante esse trabalho. Coll e
Coronel aceitaram o pedido da Rolling
Stone de não citar nominalmente a checadora de fatos em seu relatório, com
o argumento de que ela era uma funcionária de baixo escalão sem autoridade para
decidir. Vários participantes da revista se negaram a responder a certas
perguntas que, segundo eles, violavam o privilégio advogado-cliente. Nem
Columbia nem os autores receberam remuneração pelo trabalho. Rolling Stone concordou em reembolsar
despesas.
22. Rolling Stone forneceu um registro de 405 páginas
das entrevistas e anotações de pesquisa de Erdely, bem como permitiu acesso às
gravações originais de áudio. Erdely entregou esses registros à Rolling Stone antes que ela ou a revista
soubessem que havia quaisquer problemas com a matéria. Erdely afirmou que
digitava anotações na época num laptop enquanto fazia entrevistas telefônicas
ou pessoalmente. Em alguns casos, gravou entrevistas e reuniões em fita e mais
tarde as transcreveu. Nós comparamos as transcrições que Erdely apresentou de
suas entrevistas gravadas com as fitas de áudio e constatamos que as
transcrições eram corretas. As anotações das entrevistas que foram digitadas
por Erdely contêm suas próprias perguntas ou comentários, por vezes entre
parênteses, bem como os de seus entrevistados. Erdely disse que por vezes
digitava suas próprias perguntas ou comentários simultaneamente com as
entrevistas, mas que em outras ocasiões os digitava após o fim das entrevistas,
resumindo as perguntas que havia formulado ou os comentários que fizera.
33. A retratação, pela Rolling Stone, de sua reportagem sobre Jackie, refere-se à matéria
que publicou. A retratação não pode ser entendida como evidência do que
realmente aconteceu com Jackie na noite de 28 de Setembro de 2012. Se Jackie
foi atacada e, nesse caso, por quem, não pode ser definitivamente estabelecido
pela evidência disponível.
Os registros telefônicos de Jackie a partir de
Setembro de 2012 proporcionariam forte evidência sobre o que poderia ter
acontecido com ela. Mas a polícia de Charlottesville afirmou que a empresa por
ela solicitada a fornecê-los não mais dispunha de seus registros de 2012. Após
entrevistar 70 pessoas e ganhar acesso a alguns registros da universidade e da
fraternidade, a polícia de Charlottesville só pôde afirmar que não encontrou
prova do estupro coletivo que Rolling
Stone descreveu. Essa constatação, afirmou o chefe de policia Timothy
Longo, “não significa que algo terrível não tenha acontecido com Jackie”
naquela noite.
44. Numa carta, Groves objetou à descrição que a Rolling Stone fez de seus atos durante
uma reunião do Conselho de Visitantes da Universidade da Virgínia em Setembro
passado. Um vídeo da reunião está disponível em um website da UVA. Groves
escreveu que Erdely “não revelou os significativos detalhes que eu havia
incluído no escopo” de uma revisão realizada pelo Ministério da Educação sobre
a obediência à legislação pela UVA. A íntegra da carta de Groves está em link
neste relatório.
No email
enviado através de seu advogado, escreveu Eramo, a Rolling Stone “fez numerosas
afirmações falsas e implicações enganadoras sobre a maneira pela qual
desempenhei meu trabalho como presidente do Conselho de Má Conduta Sexual da
Universidade da Virginia, inclusive alegações sobre casos de estudantes
específicos. Apesar da lei me proibir de comentar esses casos específicos a fim
de proteger a privacidade dos estudantes que aconselho, posso dizer que o
relato das minhas ações na Rolling Stone é
falso e enganador. A reportagem trivializa as complexidades de fornecer apoio
às sobreviventes, com conhecimentos sobre trauma e as reais dificuldades
inerentes a se equilibrar o respeito pelos desejos das sobreviventes com o
provimento de segurança a nossas comunidades. Em termos gerais, eu não permiti
– e nunca fiz isso – que uma matéria de mídia pudesse influenciar a forma pela
qual tenho aconselhado estudantes ou as decisões que tomei em minha posição. E,
ao contrário da afirmação a mim atribuída na Rolling Stone, nunca chamei a Universidade da Virginia de “escola
do estupro”, nem jamais sugeri – quer profissionalmente ou em particular – que
pais não iriam ‘querer mandar sua filha’ para a UVA. Na qualidade de ex-aluna
da UVA e como alguém que tem vivido na comunidade de Charlottesville por mais
de 20 anos, tenho profundo e intenso amor por esta Universidade e pelos alunos
que aqui estudam.”
5. Em Dezembro último, Rosen deixou
a Wenner Media para trabalhar na ALM Media, onde é advogada geral. Rosen
afirmou que sua saída não tem ligação com “Um Estupro no Campus” e que não tivera
qualquer participação na revisão da matéria antes da publicação. Ela declarou
que começou a conversar com a ALM em Setembro, antes da reportagem de Erdely
ser concluída, sobre a posição que afinal veio a assumir.
Há cinco anos venho escrevendo crítica de mídias em alguns veículos da imprensa, mas poucas vezes vi uma crítica tão detalhada e irretocável. Parabéns.
ResponderExcluirSergio Paes da Motta e Albuquerque
Há cinco anos venho escrevendo crítica de mídias em alguns veículos da imprensa, mas poucas vezes vi uma crítica tão detalhada e irretocável. Parabéns.
ResponderExcluirSergio Paes da Motta e Albuquerque
Obrigado, Sérgio. Foi justamente por perceber a importância desse trabalho que eu resolvi traduzir e publicar.
ResponderExcluirAbraço
Obrigado, Sérgio. Foi justamente por perceber a importância desse trabalho que eu resolvi traduzir e publicar.
ResponderExcluirAbraço