Na minha conversa com o presidente dessa Fundação – que
estuda as conseqüências econômicas, sociais e humanas do emprego generalizado
da informática – surpreendi-me quando ele disse que sua entidade era contrária
à identificação das pessoas, pelo Estado, com um número único para cada
indivíduo (RG, CPF, carteira de motorista, título de eleitor etc., todos com o
mesmo número), coisa que, na minha santa ignorância, parecia lógica, eficiente,
racional e facilitadora da vida das pessoas.
Essa conversa e a minha ignara perplexidade aconteceram há
quarenta anos.
Dando um fast-forward
para os dias de hoje, acabo de ler um livro assustador (infelizmente ainda não
publicado em português) que me recordou esse episódio. Chama-se Dying Light(*), do jornalista inglês
Henry Porter, que vem-se dedicando à luta pelos direitos humanos, liberdades
civis e de expressão na Grã Bretanha. Publicada em 2009, a obra veio à luz, por
coincidência, exatamente 60 anos depois da primeira edição de 1984, do também inglês George Orwell,
ficção que previa a instalação de uma ditadura mundial em que cada cidadão era
espionado e todos os detalhes de sua vida absolutamente controlados pelo
governo (o Big Brother), por meio de
um sistema de câmeras e comunicação eletrônica.
Na base do raciocínio do autor de Dying Light está a constatação de que, se por um lado esses
sistemas proporcionam os benefícios de melhores serviços públicos, maior
segurança e capacidade de prevenção de atividades criminosas, ao mesmo tempo
apresentam o grande risco de colocar nas mãos de quem exerce o governo o potencial
para asfixiar a opinião pública e destruir a base da democracia, que é o poder exercido
pelo povo e para o povo – não por e para quem possui os poderes do Estado.
A partir do contexto real de prevenção e combate ao
terrorismo que se implantou nos mandatos de George W. Bush nos EUA e Tony Blair
na Grã Bretanha, o livro de Henry Porter pinta uma situação imaginária em que o
primeiro-ministro inglês prepara simplesmente a instalação de uma ditadura,
graças a sistemas de comunicação e informação que lhe propiciam o controle
absoluto e total da vida e de todos os atos (inclusive atitudes políticas) dos
cidadãos.
E o mais grave é que,
apesar de ser obra de ficção, como 1984,
o livro cita legislação real em vigor hoje na Inglaterra – e, pior ainda,
assinala que todas essas leis restritivas à liberdade individual foram
tranquilamente aprovadas e implantadas, com pouca discussão, debate ou reação
da complacente e acomodada opinião pública, interessada apenas na sua rotina da
vida diária e – como eu, quarenta anos atrás – sem levar em conta o risco
político embutido nessas leis.
Segundo Porter, num comentário autoral publicado como posfácio ao
livro, “os britânicos passaram a ser os cidadãos mais estritamente controlados
do Ocidente, talvez de todo o mundo. Temos mais câmeras nas ruas que a soma de
aparelhos instalados em todo o resto da Europa. Essas câmeras infestam não só
as ruas e os shopping centers, mas
também restaurantes, cinemas e bares por toda parte, que fotografam a cabeça e
os ombros de cada individuo que neles entra.”
E prossegue: “As pessoas são vigiadas o tempo todo. Ao
viajar pelas rodovias todos são monitorados por câmeras que lêem as placas dos
carros e os dados de cada viagem são armazenados por cinco anos.” E por aí vai.
Tudo abençoado por legislação vigente no país. O governo,
segundo Porter, tem o direito de acessar os dados telefônicos e online de todas as pessoas, acompanhar e
registrar a vida de seus filhos num banco de dados nacional e exigir mais de 50
informações de cada cidadão que deseja sair de seu próprio país. Transações
individuais, dados sobre a saúde de cada um, tudo armazenado para sempre em
bancos de dados.
Um diploma legal que merece especial atenção em Dying Light é o Civil Contingencies Act 2004 (Lei de Contingências Civis, de 2004),
que, segundo Porter, “permite que o primeiro-ministro, um ministro ou o líder
do governo na Câmara desmantele da noite para o dia a democracia e o império da
lei”. Citando outros autores, ele comenta que essa lei permite ao governo a
suspensão de viagens, ocupação de propriedades, evacuação forçada, tribunais
especiais e detenção e prisão arbitrárias.Seria importante que alguma editora publicasse esse livro em português no Brasil. Deveriam lê-lo todos os que, no governo e fora dele, se preocupam com a manutenção das nossas liberdades individuais, da liberdade de expressão e de imprensa, no contexto maior dos direitos humanos, em face do inapelável avanço dos recursos eletrônicos, que, por sua própria natureza, tendem a se tornar cada vez mais invasivos e controladores. Da mesma forma que as burocracias.
Também deveriam ler esse inquietante livro os que defendem a unificação do número de identificação dos cidadãos; os que se opõem ou resistem à Lei de Acesso à Informação Pública, que entrou em vigor no Brasil em Novembro último; os que escancaram abundantes informações e fotos de sua vida e de seus filhos, outros parentes e amigos nos Facebooks da vida; os que criam sistemas de “mineração de dados” que permitem às empresas prever o comportamento, preferências e tendências de consumo dos cidadãos; os que possibilitam que a moça da central de telemarketing que nunca me viu na vida me ligue à noite, em casa, me chamando pelo nome, para vender algum produto.
É cada vez mais fácil usar todos esses mesmos recursos que aumentam nossa eficiência e produtividade – e o muito mais que vem por aí na tecnologia digital – também para nos invadir, nos controlar, nos manobrar e nos dominar.
(*) Originalmente lançado pela editora britânica Orion
Books, o livro foi publicado também em edição norte-americana pela Atlantic
Monthly Press, com o título The Bell
Ringers. Ambas as edições podem ser adquiridas na Amazon, em forma impressa
ou eletrônica.
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