quinta-feira, 24 de setembro de 2020

A extraordinária vida jornalística de Harold Evans

Por Adam Gopnik

The New Yorker

 24 de Setembro, 2020

Adam Gopnik, redator da The New Yorker, escreve para essa revista desde 1986. É autor do recente livro A Thousand Small Sanities: The Moral Adventure of Liberalism.

Em seu primeiro emprego em jornal, no Reporter, de Ashton-under-Lyne, próxima a sua cidade natal de Manchester, na Inglaterra, o jovem Harry Evans foi indagado por um carrancudo editor exatamente quantos raios há numa roda de bicicleta. (Naqueles anos difíceis da guerra, Evans pedalava quase 20 km. para ir trabalhar). “Não sei, senhor”, respondeu o foca. “Vá descobrir! Curiosidade é a coisa mais importante no jornalismo. Curiosidade! Faça perguntas, Evans!” insistiu o rabugento editor.

E o rapazinho seguiu o conselho. De todas as características memoráveis de Evans, que morreu na última quarta-feira, aos 92 anos, a mais memorável era a qualidade e constância de sua curiosidade. A curiosidade pode parecer uma virtude secundária, como a cortesia ou a pontualidade, mas a qualidade da curiosidade de Harry sempre foi uma demonstração de que, nas mãos certas, ou na mente certa, pode ser uma virtude primordial – e de que, para profissionais de jornais e revistas, a curiosidade é, ao lado da coragem, a virtude que mais diferença faz.

Harry estava sempre curioso – simpaticamente curioso, exigentemente curioso e, para quem trabalhava com ele, por vezes exaustivamente curioso: curioso sobre politica, curioso sobre redação, curioso sobre o amor, curioso sobre o mundo. Acima de tudo, curioso sobre a verdade das coisas – não a verdade oficial ou a verdade aceitável ou a verdade cosmética, mas a verdade não envernizada dos eventos significativos. Ele a buscava implacavelmente e sem temor; e o charme e a ingenuidade juvenil de seu jeito pessoal de ser eram apenas um disfarce para alguém que achava que, quer se tratasse de raios de rodas de bicicleta ou segredos enterrados, sua função na vida era saber.

Ele abre as maravilhosas memórias de sua vida jornalística, My Paper Chase (Minha Caça aos Jornais) – publicado quando ele já tinha mais de 80 anos, mas ainda em um tom e espirito lindamente valorosos – narrando seu encontro com soldados exaustos numa praia, que haviam acabado de ser evacuados de Dunquerque e tomando consciência, apesar de ser apenas uma criança, de que a historia-padrão de Dunquerque como um “triunfo” para elevar o moral estava distante da experiência vivida de Dunquerque por quem testemunhou o episódio. Aquela cena na praia informou sua vida com a confiança em que a historia oficial não era necessariamente, nem mesmo provavelmente, a historia adequada – e que a historia oficial poderia conter elementos da verdade rearranjados.

Foi essa busca da verdade, muitas vezes enfrentando resistência, que fez dele o mais famoso jornalista da Grã- Bretanha na segunda metade do século vinte. Como editor de jornal, ele se encontrava em um nível legendário que, nos Estados Unidos, só Ben Bradlee, no Washington Post, pode igualar. Em seu primeiro cargo importante de editor, no Northern Echo, de Darlington, Evans liderou uma luta quixotesca para limpar a reputação de um jovem chamado Timothy Evans, que fora injustamente condenado e enforcado por assassinato. O trabalho de reportagem impulsionou o combate à pena capital na Grã-Bretanha e levou Evans a acreditar que é justamente no momento em que um jornal está começando a cansar de sua própria cruzada que o público realmente começa a prestar atenção.

A reputação que conquistara no Norte da Inglaterra o levou a ser contratado como editor do Sunday Times, em Londres, aos 38 anos de idade. Foi ali que ele lançou seu time de repórteres investigativos chamado “Insight”, que, entre outras coisas, conseguiu justiça, ou ao menos recompensa, para as crianças mutiladas por uma droga contra enjôo matinal chamada Talidomida. (Essa história foi tema de um belo documentário recente, “Attacking the Devil” (Atacando o Demônio). Além disso, Evans e seus repórteres também cavaram fundo, enfrentando a resistência do "establishment", para investigar a verdadeira dimensão da espionagem cometida pelo [agente secreto britânico] Kim Philby em favor da União Soviética.

Evans fez parte daquela geração realmente notável de heróis britânicos da classe trabalhadora que se tornaram adultos durante o primeiro governo do Partido Trabalhista, após a segunda guerra mundial. Ele descreveu como, ao apenas dizer que queria ir para a universidade era, para um jovem de família operária de sua geração, do Norte da Inglaterra, como anunciar que pretendia se casar com a [estrela de cinema] Betty Grable; era uma atitude igualmente arrogante e igualmente de sucesso improvável.

Foi sinal de sua clareza mental o fato de que Evans nunca foi estreitamente partidário em suas posições políticas. Filho de um pai esquerdista que foi francamente pró-soviético durante a guerra, ele manteve essa paixão igualitária em seus embates com autoridades britânicas e, mais tarde, em suas confrontações com Rupert Murdoch, que o elevou a editor do Times diário e mais tarde o demitiu por não ser suficientemente obediente à causa de Margaret Thatcher. No entanto Evans também foi simpático à batalha de Murdoch, em 1986, contra os sindicatos de trabalhadores em jornais, que Murdoch julgava “Ludistas” [combatiam o emprego de máquinas no trabalho, por julgarem que ameaçavam seus empregos].

Sua mudança para os Estados Unidos, na década de 1980, levou aquele que alguns chamavam de “o James Bond de Fleet Street” [a rua onde se localizavam as instalações dos principais jornais de Londres] a se tornar famoso, em certa medida, como o marido de sua segunda esposa, Tina Brown, quando ela passou a ser editora de Vanity Fair e mais tarde da The New Yorker.

Na verdade, porém, suas realizações nos Estados Unidos foram igualmente extraordinárias: como publisher, na editora Random House, ele contratou e produziu incontáveis livros da melhor qualidade e foi um inigualável apoiador de escritores retardatários. (Ele me contratou para dois livros, um sobre arte – que eu ainda não concluí, 30 anos depois – e outro, sobre Paris, já publicado). Mas ele nunca mostrou o menor ciúme da extraordinária carreira de sua esposa como editora de revistas americanas e seu feminismo instintivo o fez mais orgulhoso das realizações dela do que de seus próprios feitos.

Mas ainda mais notáveis que seu trabalho editorial foram os ótimos e ambiciosos livros que ele escreveu após deixar o trabalho de escritório, entre os quais estudos sobre a História americana, um manual de boa redação e aquelas maravilhosas memórias da vida de jornalista, onde o cheiro e a sensação dos tipos quentes são palpáveis.

Ele era curioso, corajoso e enérgico. E era amável também. Poucos podem ter conquistado esse qualificativo mais prontamente, ou merecido mais essa palavra. Ele era uma daquelas raras pessoas que, se você o conhecesse um pouco, ficaria sempre contente ao vê-lo – sabendo que, sem afetação ou malícia, ele lhe interrogaria de trás para a frente e de frente para trás sobre como estavam as coisas, como realmente estavam as coisas; o que você tinha visto no último lugar onde estivera e o que isso lhe tinha feito pensar. Com seus mais de 90 anos, Harry Evans ainda continuava a contar raios de roda de bicicleta e a perseguir estrelas.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Empresa, Comunidade e Opinião Pública: Repórter do Globo perdeu grande oportunidade

Empresa, Comunidade e Opinião Pública: Repórter do Globo perdeu grande oportunidade:   “Queria encher tua boca de porrada”. Quando o valentão da esquina, o bully do pátio da escola ou o cowboy de preto do filme faz essa brava...

Repórter do Globo perdeu grande oportunidade

 

“Queria encher tua boca de porrada”. Quando o valentão da esquina, o bully do pátio da escola ou o cowboy de preto do filme faz essa bravata, uma resposta “Então vem pra cima e vamos ver” deixa o tipo numa sinuca de bico. Ou ele agride – e corre o risco de levar uma sova, ou ser freado pelos capangas – ou não ataca e se desmoraliza.

Foi essa chance de desmonte do falastrão que o jornalista do Globo perdeu há poucos dias.

Bancar o machão com palavras é coisa de frequentador de porta de botequim vagabundo, não da mais alta autoridade de um país.

OK que um repórter não espera uma asneira como essa de um mandatário e sua surpresa com certeza e justificadamente o fez congelar. Pena. Perdeu-se uma ótima oportunidade para chamar o blefe do sujeito e publicar excelentes manchetes.

By the way, terão vindo do céu os 89 mil?

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Uma jornalista esmagada pela patrulha da polarização


Bari Weiss, articulista e editora americana que já trabalhou no Wall Street Journal e, há três anos, era editora de opinião e autora de artigos sobre cultura e política no New York Times, acaba de se demitir do jornal, publicando em seu blog uma contundente carta, cuja íntegra, que vale a pena ler, está em https://www.bariweiss.com/resignation-letter

Eleita no ano passado pelo jornal israelense Jerusalem Post como a sétima pessoa judia mais influente do mundo, Weiss – que se declara de centro-esquerda – decidiu sair do jornal por se sentir patrulhada, perseguida e atacada por extremistas.

“Fui contratada – escreveu – com o objetivo de trazer vozes que de outra forma não apareceriam nas [nossas] páginas: novos autores, pessoas de centro, conservadores e outros que não pensariam naturalmente no The Times como sua casa. A razão desse esforço era clara: a falha do jornal em prever o resultado da eleição de 2016 significava que ele não tinha uma percepção firme do país que cobre. [...] A prioridade na editoria de Opinião era ajudar a corrigir essa deficiência.”

No entanto, disse mais adiante: “O Twitter não está no cabeçalho do The New York Times. Mas o Twitter se tornou, em última análise, seu editor. Na medida em que a ética e o comportamento dessa plataforma passaram a ser os mesmos do jornal, o próprio jornal se tornou cada vez mais um espaço de performances. Matérias são escolhidas e apresentadas de maneira a satisfazer a mais estreita das audiências, em vez de possibilitar que um público curioso leia sobre o mundo e tire suas próprias conclusões. Sempre aprendi que os jornalistas têm de escrever o primeiro rascunho da Historia. Agora a própria Historia é mais uma coisa efêmera moldada para se adaptar às necessidades de uma narrativa pré-determinada.”

Consta que Julio César teria sido o primeiro a publicar um jornal, por volta de 70 A.C. Desde então e até as últimas décadas, jornalistas e especialmente donos de jornais sempre foram os intermediários entre as notícias e os leitores. O próprio New York Times, há 115 anos, tem como lema “All the news that´s fit to print” (Todas as noticias que é adequado publicar).

“É adequado publicar” segundo quem? Segundo os jornalistas e os donos do jornal, claro: os árbitros do que os leitores devem ou não ficar sabendo – notícias e opiniões – e com que destaque.

Só que a internet acabou como esse tradicional “monopólio”de intermediação. Todo mundo virou noticiador, opinador, editor, fotógrafo. O que permite também a proliferação de patrulhadores, atacadores, perseguidores.

Jornais e jornalistas se contorcem para sair desse beco (que não tem saída) e continuar a nortear a opinião pública, enquanto anônimos com ou sem agendas próprias e as novas figuras de “influenciadores digitais” – que incluem incontáveis mediocridades, manipuladores, faturadores etc., até robôs  – conquistam milhões de seguidores pelo planeta.

Bari Weiss, como toda a imprensa profissional do mundo, foi apanhada no contra-pé por esse processo transicional, que, por outro lado, beneficia tipos como Trump, Bolsonaro, Boris Johnson e outros do mesmo jaez.

Diz ela, em sua carta: “As lições que deveriam ter sido absorvidas após a eleição [de Trump] – lições sobre a importância de compreender outros americanos, a necessidade de resistir ao tribalismo e a centralidade do livre intercâmbio de ideias, para uma sociedade democrática – não foram aprendidas. Em vez disso, surgiu um novo consenso na imprensa, mas talvez especialmente neste jornal: que a verdade não é um processo de descobrimento coletivo, mas uma ortodoxia já conhecida por uns poucos iluminados cuja função é informar todas as outras pessoas.”

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Por Dentro das Revoltas que Irrompem nas Grandes Redações dos Estados Unidos


No primeiro fim de semana deste mês, no embalo do assassinato de George Floyd por policiais, chegou ao auge no jornalismo americano um processo que vem fervilhando há anos e que se origina da mescla da reação da opinião pública contra o racismo, a intolerância e os ataques de Donald Trump à imprensa, o combate à violência policial, o crescimento das redes sociais e o advento de uma nova geração de jornalistas, muitos deles negros.
O New York Times publicou no domingo e novamente na segunda-feira passados o artigo a seguir, que sugere o possível surgimento de um novo paradigma na imprensa dos Estados Unidos – com possíveis reflexos no resto do mundo democrático – que, devido a sua importância, eu decidi traduzir e publicar, para conhecimento do público e especialmente dos jornalistas brasileiros.
Seu autor é o colunista de media Ben Smith, que começou a trabalhar no New York Times em 2020, após oito anos como fundador e editor-chefe do BuzzFeedNews. Antes disso, atuou na cobertura de política para o Politico, The New York Daily News, The New York Observer e The New York Sun.




A EQUAÇÃO DA MIDIA
Por Dentro das Revoltas que Irrompem nas Grandes Redações dos Estados Unidos
Reivindicações de membros da equipe ajudaram a encerrar o mandato de James Bennet como editor de Opinião do New York Times. E estão causando tensão no The Washington Post. Parte da história começa em Ferguson, no Missouri.



Por Ben Smith
Publicado em 7/6/2020 e atualizado em 8/6/2020


Wesley Lowery acordou em Ferguson, no Missouri, dia 14 de Agosto de 2014, seu rosto ferido por um policial que o havia golpeado contra uma máquina de venda de produtos. Além disso ele tentava recolocar seus cadarços nos sapatos, depois que a policia os retirou ao atirá-lo numa cela na noite anterior. Por volta das 08:30 da manhã,  ele ligou para o programa matutino da CNN, onde o apresentador lhe transmitiu um conselho de Joe Scarborough, da MSNBC: “Na próxima vez que um policial te mandar circular porque há manifestações por perto, bem, você provavelmente deve obedecer.”

Lowery, furioso, respondeu: “Eu gostaria de convidar Joe Scarborough para vir a Ferguson e sair do Starbucks onde ele está tomando arrogantemente seu café”, disse ele à CNN, narrando que “jogaram gás lacrimogêneo em mim, me atingiram com balas de borracha, eu vi mães, filhas, chorando, um garoto de 19 anos em prantos enquanto corria para tirar sua irmã de 21 anos de uma nuvem de gás lacrimogêneo.”

O desabafo de um repórter de 24 anos do Washington Post provocou olhares espantados em Washington. Mas Lowery seguiu em frente e fez seu nome em Ferguson como uma estrela agressiva e conhecida, formulando uma nova e crua perspectiva sobre a injustiça racial. Seis anos mais tarde, pouca gente na indústria da notícia põe em dúvida a premissa de Lowery: a polícia americana é mais brutal e desonesta do que grande parte da mídia reportava, antes do episódio de Ferguson.

“Eu vejo tudo de maneira diferente e nunca faria aquilo de novo,” disse-me Scarborough sobre as palavras que trocou com Lowery em 2014. “Eu devia ter calado a boca.”

Momentos históricos não têm começo e fim de forma bem definida, mas a nova maneira de cobrir os protestos sobre direitos civis, como o próprio movimento “Vidas Negras Importam”, se desenhou nas ruas de Ferguson. Testemunhar de perto a brutalidade de uma estrutura de poder branca, para com seus cidadãos negros e pobres, ajudou a criar a forma  pela qual uma geração de repórteres,  em sua maioria negros, passaram a enxergar seu trabalho, quando voltaram para suas Redações.

E em 2014 eles passaram a ter no Twitter um poderoso veiculo. A plataforma oferecia um contrapeso a suas Redações, que durante anos procuravam contratar repórteres negros, com a condição implícita de que eles mordessem a língua sobre o racismo.

Agora, quando os Estados Unidos encaram a eclosão de um movimento que começou em Agosto de 2014, suas maiores Redações tentam harmonizar uma tradição que visa a convencer a maior audiência possível de que suas reportagens são neutras, com jornalistas que acreditam que, em questões que vão de raça a Donald Trump, uma cobertura correta exige claras decisões morais.

O conflito explodiu recentemente em protestos públicos no The New York Times, culminando na demissão de seu editor-chefe de Opinião, no último domingo; no The Philadelphia Inquirer, cujo editor executivo pediu demissão no sábado, por causa da manchete “Prédios Também Importam”; e no Pittsburgh Post-Gazette. E tem sido motivo de uma silenciosa agonia no The Washington Post, que Lowery deixou no começo deste ano, meses depois que o editor executivo, Martin Baron, ameaçou demití-lo por externar suas opiniões no Twitter a respeito de raça, jornalismo e outros assuntos.

A opinião de Lowery de que “o valor fundamental das organizações noticiosas tem de ser a verdade, não a percepção de objetividade”, como ele me disse, tem ganho uma serie de batalhas, varias delas sobre como cobrir questões de raça. Acaloradas críticas pelo Twitter ajudaram a eliminar eufemismos como “racialmente saturado”. De maneira gradual e desajeitada, os grandes veículos cederam terreno, usando mais livremente “racista” e “mentira”, especialmente ao descrever o comportamento de Trump. O Times prometeu reorganizar sua seção de Opinião depois que um artigo do senador Tom Cotton, advogando o uso de tropas militares em cidades americanas, enfureceu a Redação na semana passada. 
 
Eles Levantaram as Mãos

O grupo de repórteres que  desembarcou em Ferguson quando um rapaz negro de 18 anos, Michael Brown Jr., foi mortalmente alvejado por um policial branco, era mais negro que a maioria das grandes Redações americanas. Isso não ocorreu por acidente – muitos repórteres haviam levantado as mãos para cobrir uma pauta que apareceu primeiramente no Twitter . Lowery, novo setorista do Congresso, perguntou se poderia ajudar no blog ao vivo do The Post, comentando o que aconteceu depois do tiro, mas em vez disso viu-se a andar pelas ruas. Yamiche Alcindor, então com 27 anos, viu a noticia no Twitter, “achou que o USA Today deveria cobrir aquilo no próprio local” e pediu para ir. Akilah Johnson, então com 35 anos, repórter do Boston Globe, enviou em e-mail a seu editor dizendo que “uma cidade americana está em chamas” e foi posto num avião. Craig Melvin, 35 anos, correspondente da NBC, pediu a seu chefe “me põe no time, técnico”. Rembert Browne, que tinha 27 anos e escrevia para o site de esporte e cultura Grantland, estava olhando seu telefone num bar no Brooklin quando sentiu “eu quero fazer alguma coisa” e comprou uma passagem aérea.

“Havia uma massa crítica de jornalistas negros – a maioria jovens – vários ou a maioria deles calejados na história de raça e na história de violência policial neste país”, afirmou Jelani Cobb, do The New Yorker, um experiente e respeitado líder do grupo, que comemorou seu 45º aniversário num bar próximo à chefatura de policia de Ferguson.
O que encontraram chocou muitos deles: sentindo-se abandonados, cidadãos cuja ira por vezes mirava a imprensa e os policiais se preparavam para uma guerra.

“Ver policiais em veículos blindados com equipamento anti-rebelião e armas semiautomáticas, num bairro residencial nos Estados Unidos – e vê-los olhando para pessoas negras não como cidadãos e contribuintes, mas quase como combatentes inimigos, foi surreal”, disse Errin Haines, então repórter da Fusion e atualmente editor especial para The 19th, numa entrevista telefônica.

Em 18 de Agosto, após nove noites de agitação, a policia de Ferguson impôs que os manifestantes simplesmente não podiam reunir-se em lugar algum. Então a repórter Yamiche Alcindor disse que passou a andar sem parar, entrevistando manifestantes cansados, que faziam a mesma coisa.

“Andar em círculos e só mais tarde tomar consciência de que a regra era simplesmente inconstitucional mudou minha maneira de pensar sobre o oficio de repórter – me fez refletir que eu deveria questionar tudo, inclusive as regras de nosso trabalho de reportagem”, disse-me em entrevista Alcindor, que na época era repórter do Times e agora é setorista do programa PBS NewsHour na Casa Branca.

A polícia não fazia muita distinção entre o pessoal da mídia e as pessoas que os jornalistas estavam cobrindo. “Não havia a percepção de que eu era diferente de um manifestante. Levei empurrões, a polícia apontou armas contra mim e contra outras pessoas”, lembrou Joel Anderson, então repórter do BuzzFeed News em Ferguson e atualmente redator e apresentador de um podcast da Slate.

Alguns jornalistas, como Adam Serwer, da MSNBC, hoje na The Atlantic, já chegaram céticos sobre o lado policial da história. Outros, como Melvin, haviam trabalhado em noticiário local recorrendo a fontes policiais.

“Quanto mais tempo você ficava lá, quanto mais gente você entrevistava e mais informação surgia, mais claro ficava que a narrativa oficial era um monte de merda”, disse Melvin em entrevista telefônica.

O veio central para os repórteres, produtores, ativistas e uma vasta audiência nacional era o Twitter, que já havia começado a sutilmente modificar a dinâmica do poder nas notícias. A plataforma conduzia a cobertura. Quando John Eligon, do The Times, publicou um perfil bastante simpático de Michael Brown, que o descrevia como “nenhum anjinho”, causou indignação no Twitter, como símbolo de um estilo jornalístico que parecia muito inclinado a explicar a violência policial.

“Eles tinham razão" sobre a frase, lembrou Elington na semana passada. O Twitter fazia você se sentir mais responsável para com uma audiência mais ampla e uma audiência mais diversa.”

A plataforma proporcionava também aos repórteres mais jovens “liberdade para estabelecer seus próprios suportes, de um jeito que nós não conseguíamos sem que alguém nos desse as chaves”, disse Trymaine Lee, então com 35 anos e como repórter da MSNBC.

“Anteriormente você era um joguete da Redação,” disse Lee, hoje correspondente da MSNBC. Mas no Twitter, os jovens jornalistas recebiam “reforço positivo, milhares e milhares de pessoas dizendo ‘Sim, nós gostamos disso.’”

Nova Pressão sobre as Redações

Algumas das lições aprendidas em Ferguson – sobre raça e sobre a experiência particular de repórteres negros, entre outras – se refletiram na desafiadora era seguinte: a chegada de Trump, cuja linguagem e táticas intolerantes destruíram normas. Repórteres negros uniram-se a outros jornalistas para pressionar, nas Redações e no Twitter, por linguagem mais direta – e menos deferência – na cobertura do presidente.

Esse padrão persistitiu na semana passada, quando profissionais do Times começaram uma extraordinária campanha para condenar publicamente o artigo escrito pelo senador Cotton. Membros de um grupo interno chamado Black@NYT  organizaram a iniciativa num novo canal Slack e chegaram a um manifesto cuidadosamente redigido. O texto diria que o artigo de Cotton “colocava em perigo” os profissionais negros, palavras escolhidas para “focar no trabalho” e “evitar que fosse interpretado como sendo hiperpartidário”, disse um deles. Na quarta-feira à noite, por volta das 07:30, horas depois que o artigo foi postado, funcionários do Times começaram a tuitar uma tela com o texto de Cotton, a maioria com alguma versão da sentença: “A publicação disto põe em perigo os funcionarios Black@nytimes.” A associação de jornalistas (NewsGuild) de Nova York mais tarde orientou os profissionais de que essa formulação era uma fala legalmente protegida porque focalizava a segurança no local de trabalho. “Não era só uma opinião, era violento – convocava para uma ação que poderia ferir pessoas” afirmou um ativista sindical sobre o artigo de Cotton.

Funcionários do Times enviaram ao publisher uma carta, à qual um repórter me deu acesso, dizendo que “a mensagem [de Cotton] solapa o trabalho que nós fazemos, na Redação e em opinião e é uma afronta aos nossos padrões de reportagem precisa e ética no interesse do público.” Um porta-voz da associação NewsGuild declarou que mais de mil funcionários do Times assinaram a carta, mas que seus nomes não seriam tornados públicos, nem divulgados internamente.

O protesto deu resultado: o jornal entrou em crise interna e o publisher, A.G.Sulzberger, resolveu que não podia continuar com Bennet como editor da seção de Opinião, que havia tropeçado repetidas vezes, enfurecendo a Redação.

Bennet reconheceu que não havia lido o artigo antes da publicação, o que foi visto como uma confissão condenatória por pessoas de todos os níveis do Times. Ele afirmou numa reunião virtual na sexta-feira com cerca de quatro mil profissionais do Times que, “com relação a idéias e até idéias perigosas, a coisa certa a fazer é expô-las na nossa plataforma ao escrutínio e ao debate públicos e esse é o melhor caminho, de forma que até idéias perigosas possam ser descartadas.” Mas acrescentou que agora estava se perguntando “Isso estará certo?” (Bennet não aceitou ampliar a discussão dessa situação comigo.)

Na mesma reunião, executivos do Times agradeceram aos profissionais por sua indignação pública e no mesmo dia, mais tarde, publicaram uma nota editorial acima do artigo de Cotton, afirmando que ele continha alegações que “não foram confirmadas”, seu tom era “desnecessariamente áspero” e que ele não deveria ter sido publicado.

E enquanto os que se irritaram com o artigo de Cotton dominaram as conversas no Twitter e no Slack e ganharam o dia, alguns profissionais discordaram da decisão, privadamente e em público.

“Um jornal forte e uma democracia forte não se intimida com muitas vozes. E isto tinha claro valor de notícia,” escreveu no Twitter Michael Powell, repórter de longa data e colunista de esportes do The Times. Além disso, considerou a nota editorial “um embaraçoso recuo de princípio.”

As lutas no The Times são especialmente intensas porque Sulzberger está agora avaliando candidatos para substituir o editor executivo, Dean Baquet, em 2022, quando ele completará 66 anos. Os candidatos representam diferentes visões do jornal e Bennet havia personificado um tipo particular da política ecumênica do establishment. Mas a debacle de Cotton havia claramente posto em risco o futuro de Bennet. Quando o respeitado editor do Sunday Business, Nick Summers, disse numa reunião do Google Hangout na última quinta-feira que não trabalharia sob Bennet, ouviu a concordância dos colegas.

Por quanto tempo Sulzberger e Baquet suportarão a pressão pública de seus profissionais não está claro. Numa fase anterior de turbulência social, A.M.Rosenthal, que dirigiu a Redação entre 1969 e 1986, ficava de olho vivo e mão pesada sobre os repórteres que ele achava que tinham excessiva inclinação para a esquerda. As palavras “Ele manteve o jornal na linha” estão inscritas em seu túmulo.

Minutos depois que Sulzberger disse aos funcionários, em e-mail, que Bennet se havia demitido, ele me recomendou que não interpretasse a medida como uma mudança filosófica. Rosenthal, observou,  havia liderado uma Redação muito menos diversa e dedicada a cobrir Nova York para os habitantes de Nova York.

“Neste caso nós fizemos besteira e, se tivéssemos nos escondido por trás de ‘Queremos manter o jornal na linha’ para não reconhecer isso, teríamos ficado mais expostos,” declarou Sulzberger.

Em outra entrevista na sexta-feira ele me disse: “Não estamos recuando dos princípios de independência e objetividade. Não pretendemos ser objetivos sobre questões como direitos humanos e racismo.”

Mas a mudança nos principais veículos americanos – impelida por um jornalismo que é mais pessoal e por repórteres mais empenhados em escrever o que eles consideram verdade, sem se preocupar em desagradar os conservadores – agora parece irreversível. Esse processo é impulsionado em partes iguais por política, cultura e pelo modelo de negócio do jornalismo, apoiando-se cada vez mais em leitores apaixonados dispostos a pagar por conteúdo e menos e menos em anunciantes assustadiços.

Essa mudança vai chegar muito tarde para a carreira de Lowery no The Washington Post. Depois da cobertura em Ferguson ele propôs e foi um dos principais repórteres num projeto de construção do primeiro banco de dados nacional sobre tiroteios executados por policiais e registro das lições daí extraídas. Esse trabalho rendeu ao The Post um Premio Pulitzer em 2016. Aos olhos de pessoas de dentro e de fora ele parecia o protótipo do repórter precoce, claramente ambicioso, um pouco arrogante e muito talentoso (apesar dessa imagem geralmente corresponder a um homem branco), que subiu rapidamente na carreira em jornais americanos.

Mas Baron tem sido mais sensível que outros chefes de Redação a repórteres que forçam os limites no Twitter e na televisão, como narrou Max Tani no Daily Beast, no início deste ano. (No New York Times, a politica sobre mídia social é geralmente aplicada por meio de um e-mail passivo-agressivo de um editor e raramente ocorre alguma outra medida na sequência.) Lowery contou que, quando deu uma resposta firme a uma autoridade Republicana que havia criticado no Twitter sua cobertura em Ferguson, levou um sermão de Baron.

Em 2019 o editor executivo havia reunido exemplos de conduta por ele considerada imprópria de parte de Lowery, entre eles um tuite que ridicularizava os participantes de uma festa de lançamento de livro em Washington, chamando-os de “aristocratas decadentes”; e outro tuite criticando uma reportagem do New York Times sobre o movimento Tea Party.

E depois de uma tensa reunião em Setembro último, Baron entregou a Lowery um memorando escrito na linguagem desajeitada e condescendente de recursos humanos:

Lowery estava “deixando de desempenhar suas funções de trabalho por atuar nas redes sociais de maneira que viola a política do The Washington Post e prejudica nossa integridade jornalística,” dizia o memorando.

“É preciso que cesse imediatamente o uso impróprio das redes sociais, acima descrito. Caso contrário tomaremos medidas disciplinares adicionais, incluindo até o fim de seu emprego.”

Lowery respondeu com outro memorando, defendendo-se ponto por ponto, mostrando erros específicos e argumentando que, em um dos casos, ele estava participando de um “debate sobre um tópico que eu cubro diretamente – raça e racismo nos Estados Unidos.”

"Gerações de jornalistas negros, inclusive aqui no The Washington Post, serviram de consciência não só de suas publicações, mas de toda a nossa indústria,” disse Lowery no memorando a Baron, ao qual também tive acesso. “Muitas vezes esses jornalistas fizeram isso divulgando criticas publicas tanto sobre seus concorrentes quanto sobre seus próprios empregadores. As empresas noticiosas frequentemente reagem positivamente a tal pressão interna e externa.”

Funcionários do Washington Post contaram que, ao confronto entre o mais famoso editor de jornais dos Estados Unidos – Baron é retratado como herói por Liev Schreiber no filme “Spotlight” – e seu protegido, seguiu-se uma série de esforços do editor nacional Steven Ginsberg e outros, para mediar o conflito. Baron, por meio de uma porta-voz, negou-se a comentar esse episódio ou seus temas mais amplos. “Como editor, seria inapropriado ele falar sobre um funcionário individual,” disse a porta-voz Kris Coratti.

Mas seis meses mais tarde Lowery saiu do The Post para trabalhar num projeto do programa “60 Minutes” sobre a nova plataforma de streaming Quibi. Foi, disse ele, uma grande oportunidade.  Mas “você teria de estar fora da realidade para achar que o editor executivo do The Washington Post me dar uma bronca em sua sala e me convidar para procurar emprego em outro lugar não contribuíram para que eu procurasse emprego em outro lugar.”

Mas ele ainda tem o Twitter. Na quarta-feira ele tuitou que havia cancelado sua assinatura do The Times e exigia a demissão de Bennet. No dia seguinte publicou um furo importante: a família de George Floyd e o reverendo Al Sharpton iriam promover uma marcha nacional sobre Washington para marcar o aniversário da marcha dos direitos civis de 1963.

“O jornalismo americano visto-de-lugar-nenhum, obcecado pela ‘objetividade’, com ambos os lados, é uma experiência que não deu certo,” escreveu ele no Twitter, a propósito do desastre no Times. “Precisamos reconstruir nossa indústria de forma a que ela atue a partir de um lugar de claridade moral.”

Esse argumento está ganhando força nas principais Redações dos Estados Unidos. No The Times, profissionais estão pressionando por mudanças para além da seção de Opinião. No Post, um comitê que reporta a Ginsberg recentemente divulgou uma análise das atitudes dos funcionários com relação à política sobre redes sociais. E no mesmo The Post, na tensa reunião geral realizada na sexta-feira, Baron se desculpou porque, em um recente e-mail, deixou de abordar “o fardo particular e severo suportado pelos funcionários negros, muitos deles que também cobriam a pauta” dos protestos, segundo anotações de um dos participantes da reunião. O sindicato dos funcionários do Post então enviou-lhes um e-mail criticando o pronunciamento de Baron. “O que mais chama a atenção é que as quatro vozes que a empresa resolveu destacar neste momento pertenciam exclusivamente a brancos. Não pode haver exemplo mais marcante da ausência de diversidade no grupo gestor do The Post.”

Talvez mais expressivo seja que repórteres do The Post com quem conversei tenham declarado que gostariam que Lowery ainda estivesse lá, mandando noticias de Minneapolis para o jornal.

“Quando uma organização perde um jornalista tão talentoso e tão comprometido com a verdade como Wesley Lowery, seus líderes precisam se perguntar por que,” disse Felicia Sonmez, uma repórter de política nacional que entrou em choque com Baron sobre um outro tuíte. “Precisamos de mais repórteres como ele, não menos.”

domingo, 17 de maio de 2020

Empresa, Comunidade e Opinião Pública: Não fui noticia pr´o Maklouf. Bolsonaro é.

Empresa, Comunidade e Opinião Pública: Não fui noticia pr´o Maklouf. Bolsonaro é.: Um grandíssimo repórter nos deixou. Luiz Maklouf Carvalho. Das páginas, já o conhecia e admirava. Mas encontrei-o pessoalmente quando, uns...

Não fui noticia pr´o Maklouf. Bolsonaro é.


Um grandíssimo repórter nos deixou. Luiz Maklouf Carvalho. Das páginas, já o conhecia e admirava. Mas encontrei-o pessoalmente quando, uns anos atrás, ele fazia uma matéria para Piauí sobre empresas de Relações Públicas – procurando, como sempre agem os repórteres que fazem a diferença em seu ofício, alguma linguiça por debaixo do angu.

Minha admiração aumentou. Mas não fui notícia. Conversamos longamente, dei-lhe carona até a estação do Metrô mais próxima, porém minha conversa não deu samba. A reportagem saiu, mas eu não estava lá.

Sempre, desde antes desse episódio, acompanhei as matérias com sua assinatura. Era uma grife do Jornalismo com caixa alta.  Principalmente, nos últimos anos, no Estadão, com destaque para os textos sobre os tempos de quartel da pessoa que ocupa hoje o Palácio do Planalto.

As constatações que Maklouf fez sobre esse assunto depois viraram livro (“O Cadete e o Capitão: A Vida de Jair Bolsonaro no Quartel”, Editora Todavia), uma apuração jornalística cirúrgica sobre os primeiros anos de vida e principalmente a respeito do processo em que o atual presidente foi acusado pelos próprios militares de planejar um atentado com bombas contra quarteis, em campanha por aumento de soldo, após ter publicado um artigo assinado com essa reivindicação na revista Veja.

O processo incluía até desenhos explicando como se acionava uma bomba, que Veja atribuiu ao então capitão, o qual os teria entregue pessoalmente à repórter da revista.
No fim foi absolvido, de forma, segundo a apuração de Maklouf, bastante nebulosa. Logo em seguida saiu do Exército e virou político, sempre no baixo clero, durante quase 30 anos.

Convido todos os que desejarem conhecer melhor o notável jornalista Luiz Maklouf Carvalho e todos os verdadeiros cidadãos de bem deste País que tiverem na alma e no coração o bem do Brasil a lerem seu livro.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Cotruco xucro


Ler jornais virou um exercício diário de masoquismo. Ver TV é assistir todos os dias a seriados de terror sobre pestes e pandemias, sendo um dos vírus-vilões o corona.

Como, porém, não dá para evitar esse sofrimento permanente na quarentena, a única defesa é pensar, lembrar, nostalgiar. Numa dessas, vieram-me à memória palavras e expressões da minha infância e juventude.

A primeira, do tempo de menino, foi a expressão “cavalão xucro”. Animal não domado e difícil de controlar, arisco, irracional, corcoveador, escoiceador, até mordedor, não aceita arreio, nem cabresto, nem freio nos dentes, muito menos que alguém o monte. Alguns filmes de faroeste mostram bichos assim, muitas vezes bonitos, sempre impetuosos e violentos. Portanto, inúteis para o trabalho.

Meu pai, quando jovem, gostava de domar cavalos assim, segundo contava minha avó. Por isso a expressão “cavalão xucro” ficou nos anais da família e frequentemente me vem à lembrança, ao ler ou assistir ao noticiário.

Outra palavra que emergiu do meu passado num desses momentos é “cotruco”. Pelo dicionário, isso significa “mascate”, vendedor ambulante. Mas, na linguagem de caserna do meu tempo de serviço militar no 4º Regimento de Infantaria, em Quitaúna, “cotruco” era muito usado para desqualificar alguém como um sujeito grosseirão, estúpido, meio cretino, burro, primário.

“Fulano é um cotruco”. Era assim que a gente se referia a um sujeito ignorantão, abrutalhado, metido a valente – e totalmente desprovido de bom-senso e civilidade.

Tem muito cotruco cavalão xucro, sem cabresto, em disparada desembestada por aí.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Falar, ou emudecer?


“Nessas hora (sic) a gente não pensa, só desaba”. Foi, num telejornal, o comentário de uma senhora moradora de favela atingida por alguma dessas tragédias que recorrentemente vitimam seus habitantes.   

É essa também a minha reação figadal aos disparates e cafajestadas a que somos submetidos quase diariamente por quem deveria governar tendo em vista o interesse “do povo, pelo povo e para o povo”, não apenas para cultivar uma charanga de boçais e papalvos. (Se bem que seria demais querer que um tipo como aquele tivesse alguma ideia do significado do Discurso de Gettysburg, ou dos valores, capacidade de liderança e governo de Abraham Lincoln).

Por isso não tenho conseguido escrever muito neste blog, pois a) a primeira reflexão é que com esse tipo de gente não se discute, já que, com tais figuras, não há um mesmo denominador de racionalidade mínimo; e b) parafraseando a senhora lá da favela, “Nessas hora (sic) não adianta pensar e argumentar; só dá vontade de xingar”.

Aí alguém dirá: “Essa situação em que estamos é culpa da democracia, pois o povo elegeu esse sujeito, com sua horda”. Mas o voto democrático, através da Historia e pelo mundo afora – apesar de às vezes errar – também acertou muito. Churchill liderou a vitória sobre o nazismo. Lincoln acabou com a escravidão nos EUA. Mandela extinguiu o apartheid na África do Sul. Gandhi encabeçou a luta pela independência da India e se elegeu presidente do Congresso Nacional Indiano. Além do que, como disse Churchill, “a democracia é o pior dos regimes, mas não há outro melhor”.

Haverá quem argumente: “Isso é culpa da internet, que dá voz e palco a imbecis e primatas de todo tipo”. Realmente a internet amplifica falas cretinas – mas pode servir igualmente para difundir vozes razoáveis e qualificadas.

A partir dessas constatações, a conclusão óbvia é que a responsabilidade é nossa, de cada um de nós, não da democracia, nem da internet, nem de satanás, nem do terraplanismo. Mesmo que não tenhamos os milhões de seguidores conquistados pelo populismo rastaquera e por gente que publica seus próprios nudes (físicos ou intelectuais).

Se, porém, julgarmos que, canonicamente, vozes de bom-senso não serão ouvidas, porque os frequentadores de redes sociais só se interessam por soluções mágicas, grosserias e ofensas, conversas escandalosas, fake-news e boatos, famosos de fancaria – ou por temor de ataques –estaremos abrindo mão do bom combate, abdicando do direito de pregar o que julgamos correto e assim entregando os despojos, de bandeja, à estupidez e à inépcia.